
A comunidade dos historiadores se remete à palavra história entrevendo nela uma perspectiva anfibológica, isto é, ela apresenta dois sentidos diferentes, mas que nos acostumamos a dar de ombros. História é o que passou, o acontecido e também é o que foi escrito sobre o acontecido. O neologismo historiografia vem na direção de apaziguar essa tensão. Sempre que utilizamos esta palavra, estamos levando em consideração o que se escreveu em nome da história vivida, desde o passado mais remoto. E através desse procedimento pretendeu-se estabelecer uma proximidade representativa entre o ocorrido e o narrado. A história escrita possui uma relação mimética com o que aconteceu. Contudo, o círculo não se fecharia se não existisse um público, que primeiramente ouviu sobre o acontecido e que depois irá ler a respeito. Mais ainda, para além da legitimidade concedida ou não pelo grupo dos participantes do ofício, caberá também aos leitores avaliar o que se leu, da maneira que conseguir fazê-lo.
Acontecimento ocorrido e passado, com começo, meio e fim e sua descrição na forma de uma narrativa. Uma boa história é aquela que nos prende a atenção por conta da verossimilhança e por ser capaz de nos convencer que o ocorrido tenha se dado de uma forma bastante semelhante com o que está escrito. No século XIX, que se entende como o momento do nascimento da ciência histórica – a busca e a verificação da validade das fontes que darão suporte e legitimidade ao que vai ser escrito -, o mote do historiador Leopold Von Ranke (1795-1886) crava o alvo e concebe instrumento para alcançá-lo com precisão: a história deve nos contar o que verdadeiramente aconteceu. Data deste momento a constituição do mito de que o fazer histórico – do ponto de vista da pesquisa e da posterior apresentação dos resultados na forma de um texto – guarda intimidade com a verdade. Ainda hoje, mesmo que passados mais de 100 anos dos seminários promovidos nos circuitos germânicos que se tornaram referência para a ciência histórica no mundo como um todo, muitos de nós guardamos essa confiança com o que se vai ler e que leva o nome de história.
Em nosso país, nada disso é diferente. Somos herdeiros da tradição historicista remetida a Ranke e também encaminhamos aqui os procedimentos metodológicos que deram suporte à pesquisa de fontes em relação aos objetos escolhidos, bem como à elaboração de um resultado na forma de um texto escrito. As escolas históricas que despontaram pelo mundo aqui aportaram e tivemos narrativas que espelharam o marxismo, a escola das mentalidades ou a mais recente investida que é a da procura por temas que deem suporte aos inquéritos provocados pelos temas identitários. Em quase tudo nos parecemos com o que vem de fora. No entanto, temos eventos que são mobilizadores quando estão ocorrendo e que desaparecem posteriormente como se de fato, nunca tivessem existido.
Creio que seja por isso que somos bastantes aderentes às propostas de revisionismo histórico, um termo técnico que indica a retomada de um evento passado, direcionando a sua compreensão a um modo oposto ao que se convencionou acolher como mais próximo do que teria acontecido. Lembramos aqui que o revisionismo cai no domínio popular quando ele visa um acontecimento próximo ou que conte com algumas das testemunhas vivas. Fora desse quadro, alguns acontecimentos mais distantes podem ser revistos somente se foram colonizados pelas ideologias de esquerda ou direita, a partir de vieses identitários ou do que quer que seja que venha a ser abduzido pela política que se faz no presente.
Nesses casos, o que interessa não é o fato em si e nem os seus desdobramentos, mas sim os sinais que ele pode apontar para o presente, entendido aqui na mais completa pequenez. A prática do revisionismo faz parte da historiografia o que pode ser percebido desde a antiguidade. Eventos remotos, no entanto, terminam por ser visados pela erudição, aquela que procura distinguir questões que pareceriam menores aos olhos daqueles que não fazem parte da corporação citada no início. “Atravessar o oceano para verificar uma vírgula” parece uma frase retórica, mas no século XIX ela designava uma prática do ofício dos historiadores.
Haverá um modo de exclusão dos revisionismos e uma estratégia para que sejam rechaçados? Se existirem esses meios, eles se aproximariam das ideias como Platão as concebeu, como presentes no mundo inteligível. No entanto, a retomada da erudição, mesmo que moderada, pode ser um início desse percurso. Em geral, os assuntos históricos que mobilizam um público mais amplo possuem lastro em aspectos menores e banais e por isso satisfazem o fazer político mais grotesco.
A paixão pelo passado, no entanto, poderia nos mobilizar em direção à aceitação das diatribes insolúveis daquilo que aconteceu no passado. É isso o que os teóricos da história, os profissionais que refletem sobre as diferentes linhagens historiográficas apontam como a necessidade de se ver a memória como um objeto da história. Ou seja, mais do que sobre o evento em si, nossa atenção poderia se voltar para as diferentes apropriações que se fazem sobre eles. Um grande historiador brasileiro se referia a essas apropriações como borras que se sobrepõe umas sobre as outras.
A história vista por esse ponto de vista lhe parece atraente?
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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