
Alunos me falam sobre a dificuldade de se encontrar algum tipo de coerência naquilo que somos condicionados a ver e que ainda se dá o nome de notícia. Perguntamos por vezes, os motivos de ficarmos sabendo que a rainha de uma escola de samba está se aposentando ou que o presidente dos Estados Unidos vai comprar um Tesla. Ao mesmo tempo, como se houvesse algum tipo de critério, tomamos contato com o aumento da inflação no Brasil e com a necessidade de comermos fibras. Como estabelecer algum julgamento sobre esses eventos? Teriam os algoritmos conquistado as pautas noticiárias? Talvez a historiografia pode nos ajudar nessa investigação.
Tenho recuperado uma escola histórica chamada História do Tempo Presente, que por vezes é chamada por História Imediata. No entendimento desses historiadores, que no final dos anos 1970 legitimam essa interpretação na fundação do Instituto de História do Tempo Presente, “acontecimentos monstros” deram oportunidade para que a comunidade dos historiadores se voltasse para os eventos do presente. Tais situações eram da dimensão do Holocausto, da queda do muro de Berlin ou do esfacelamento da União Soviética. Acontecimentos tais que vieram a mobilizar a opinião pública, fazendo com que quase não se notasse outro assunto de tamanha monta.
Nessa época, contudo, havia uma presença de um critério que classificava tacitamente os tipos de temas que eram levados à sério e os que estavam muito longe disso. Período em que determinadas notícias eram encaradas mais como uma conversa fiada, daquelas que se lia quando tudo o de mais importante já havia sido lido. Mas exatamente, chegava-se a elas depois de ter se detido no total das matérias mais densas e significativas.
De modo bastante distinto então, a preocupação historiográfica era a de lançar luz sobre o presente, convidando os historiadores a trazerem referenciais metodológicos e justificativas teóricas que trouxessem embasamento para o tratamento de objetos de estudo alheios à formação desses profissionais. Essa virada vinha, como apontamos, num país como a França, que continuamente se destacava pela institucionalização, inclusive das correntes historiográficas.
E isso é percebido pela retomada da École de Annales que havia se indisposto com o fato, a histoire évènementielle, em voga quando da criação da ciência histórica, ainda no século XIX em solo germânico. Não por acaso, o texto considerado inicial da história do presente se trata de “O retorno do fato”, escrito por Pierre Nora, na década de 70 e que fez parte de uma coleção bastante prestigiada chamada de História Nova: novos problemas, novas abordagens, novos objetos, organizada por Nora e por Jacques Le Goff (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988 – original de 1974, 3 volumes).
As reflexões que se processavam e evoluíam, levavam em consideração a necessidade dos historiadores de se voltarem para os eventos monstros, trazendo os seus referenciais metodológicos tais como o acolhimento da preocupação de se trabalhar com testemunhos, da percepção de que o próprio pesquisador é parte ativa no que se pretende tomar como objeto de estudos, na reconfiguração do tema da memória, passando a tomá-la como facetada e referente a cada grupo ou indivíduo que a recuperava.
A História do Tempo Presente produziu trabalhos significativos ao buscar raízes mais longevas de eventos que espocavam no contemporâneo ou, se quisermos, do passado presentificado. Caminhando na seara aberta por Fernand Braudel na direção da longa duração, o recurso às permanências ganhou fôlego renovado o que também habilitou os historiadores no enquadramento dos novos objetos de estudo.
Mas, creio que o mais importante veio propiciado pela reflexão epistemológica, aquela que se configura quando o profissional toma por objeto o seu próprio fazer, sem que fique a dever por não oferecer exemplos e situações historicamente datadas. Assim, a preocupação em apresentar as suas credenciais e sinalizar os dilemas e contradições configurou-se nas reflexões que procuravam delimitar o que era e como se fazia uma história cujo foco se concentrava no presente e no imediato.
Muito longe estamos dessa dedicação que transparece cuidado e zelo. Mas é claro que essa legitimação também era política, uma vez que proclamava a sua independência teórica o que implicaria não somente em reconhecimentos pelos pares, mas também em recursos governamentais, no aparecimento de cadeiras universitárias, concursos públicos e disputas agônicas no meio intelectual. Ninguém aqui é inocente ao ponto de não ter levado em consideração as contribuições do mestre Pierre Bourdieu.
Mas, de toda sorte, ainda se avaliava o acontecimento em relação à sua repercussão. E isso era averiguado tendo como referência tanto a infra quanto a superestrutura. Em alguma medida, havia um decoro no exercício do intelectual público que fazia com que se levasse em consideração o que merecia ou não ser alçado ao nível de um tema, assunto ou pauta digna de nota e de importância.
Você vê algo assim por aí, no primeiro quarto do século XXI?
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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