Behavior

Curtindo a vida adoidado: modo tragédia

Será possível refletir e até mesmo pensar sobre as tomadas de decisões políticas que ganham o protagonismo na mídia? Conseguimos, de alguma maneira, tomar os indícios que nos chegam de um modo objetivo, o suficiente para o encaminhamento de juízos que ao menos se aproximem do que de fato está ocorrendo?

Essas questões me parecem pertinentes uma vez que algumas notícias nos mobilizam como se grandes acontecimentos nos espreitassem e estivessem prontos para se definirem a qualquer instante, em especial àqueles em que não estamos mobilizados: é da ansiedade pela surpresa que eu me refiro aqui. Permanecer em vigília, na expectativa de que algo semelhante à declaração de guerra contra a Alemanha, em 1939, ou quando do lançamento das bombas atômicas sobre o Japão, em 1945, parece ser o nosso estado de espírito predisposto.

Uma das sensações possíveis de serem observadas hoje é a de vivermos os acontecimentos do presente com a expectativa que nos acostumamos a ver no passado, em relação a eventos de grande magnitude, como esses recordados acima. Esse clima de ansiedade combina bem com o nosso contexto contemporâneo em que se fala com gravidade e tensão sobre uma situação que bem poderia ser vista, anteriormente, como corriqueira. O que teria contribuído para que chegássemos a esse ponto?

Já topamos com a resposta de que tenhamos nos tornado dependentes de especialistas dos mais variados quesitos. Uma busca no Google pode bem ser esclarecedora em relação a isso. O rompimento mais brusco com o aprendizado que se passava de uma geração mais velha para a que se seguia está mostrando as suas consequências, inclusive porque a modernidade foi ciosa o suficiente na crueldade sobre o que ficou para trás. Nos prós e contras do movimento aleatório da história, trocamos a novidade pelo que de mais garantido, ou menos ruim, poderíamos ter. E até mesmo as nossas piores mazelas poderiam ser revistas através da passagem do tempo. Ainda podemos perceber esses aspectos se temos a sorte de compartilharmos por mais tempo as relações humanas que são mais permeadas pelas virtudes do que somente pela desgraça.

Erramos quando caímos no conto do vigário que era o de zerar a cultura nossa de cada dia, acreditando que estávamos inaugurando um novo tempo nascido da esperança de que tudo iria ser melhor do que o ocorrido no passado. Habituamos até a fazer bullying com o passado, zoando de comportamentos, da relação com as ferramentas ou sendo bastante agressivos com as formas de uniões afetivas e com o desempenho dos diferentes gêneros.  O passado é nosso vizinho do lado e nos distanciamos das maiores tragédias da história por cerca de três gerações uma vez que cada uma delas são medidas em cerca de 30 anos.

Aqueles de nós que não são chat bots e que defendem o cancelamento de pessoas cujos avós se comprometeram com piores instantes da história deveriam ao menos temer que a carapuça também lhes servisse. Das piores heranças que se mantêm entre nós, uma delas é aquela da perseguição, da delação ou exclusão por motivos éticos: até extermínio calculado de um povo temos na nossa folha corrida de péssimos antecedentes.  E como selecionamos os acontecimentos que nos agradam, distinguindo-os daqueles que apenas servem para a manifestação de nosso ego, somos mais terríveis quando nos desumanizamos e julgamos que, sem dúvida, que estejamos certos.

Acrescentemos a isso, o desconhecimento mais repleto do que já ocorreu em outras épocas e então nos deparamos com a volúpia da ignorância tornada ela própria criadora de alternativas e soluções. Veja que filmes e séries de sucesso tratam disso especialmente quando se dedicam a demonstrar que os pais têm em casa filhos que lhes são totalmente desconhecidos. Pais atônitos e perdidos, me dizem os amigos psicólogos, esforçam-se como pais ciosos que são em procurar mais medições para que seus filhos sejam felizes, afastando-os de qualquer tipo de experiência que lhes sejam doloridas.

Talvez nesse aspecto como em nenhum outro, a modernidade tenha melhor mostrado as suas garras. Eu me refiro aqui à dedicação cínica com que a rede de sentidos e significados em relação ao futuro de nossa descendência foi neutralizada por intermédio de promessas vãs de liberação. A nossa obsessão para com o fim da espécie já tem dado sinais expressivos das consequências que nos aguardam. Retomo aqui uma passagem de Medéia, em que Jasão se vê abandonado e esquecido para sempre, uma vez que não terá mais descendência que se recorde dele no altar dos antepassados: ninguém mais do que Jasão reconheceu o pior dos mundos como sendo aquele em que ninguém irá se lembrar de sua existência.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.