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A ficção republicana

O exercício da cidadania política tornava-se assim caricatura. O cidadão republicano era o marginal mancomunado com os políticos; os verdadeiros cidadãos mantinham-se afastados da participação no governo da cidade e do país. Os representantes do povo não representavam ninguém, os representados não existiam, o ato de votar era uma operação de capangagem. (…) Ninguém mais se escandalizava, pois todos sabiam que “o exercício da soberania popular é uma fantasia e ninguém a toma a sério”, como se pronunciava o editorial da revista Careta, de 1915, intitulado, “A ficção da soberania popular”. José Murilo de Carvalho. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 89.

Tão preocupados estamos com a crise da democracia e com as supostas tentativas de golpe realizadas nos primeiros governos de Jair Bolsonaro ou de Donald Trump, que deixamos passar de um modo oportuno muito do que está ocorrendo debaixo de nossos narizes. Refiro-me aqui á vista grossa que se faz em relação ao comportamento dos três poderes e da relação havida entre eles. De um lado, notam-se preocupações inclusive em se manifestar sobre esse assunto, sob o risco de ser enquadrado por ofensa ou difamação. Do outro lado, percebemos um consenso que deixou de se indignar com o funcionamento mais adequado da democracia e que se sente à vontade para até nem tocar nesse tema.

Mais uma vez, pensamos se era a democracia que preocupava e mobilizava esse grupo ou se somente seria uma indicação de afinidade com o outro grupo político opositor. Penso nisso, pois os desmandos continuam e os desafios à ortodoxia da democracia chegam a ser até piores, uma vez que a autocrítica desapareceu, e com ela, a tensão com o encaminhamento das tratativas.

É assim que em alguns ambientes, a política sequer é falada ou refletida, uma vez que se entende tacitamente, que tudo retomou o seu devido lugar. Fosse o foco na democracia verdadeiro e a postura mais adequada seria a de continuamente permanecer em guarda, procurando meticulosamente o que quer que seja que viesse a colocar em risco esse sistema de governo. Mão estamos longe dessa abordagem.

Em relação ao comportamento, constatamos que não era a democracia que mais mobilizava os combatentes digitais, mas sim, a luta pelo espaço na política. Atacar a democracia tornou-se um meio de conquista de engajamento por parte da direita. Já a esquerda almejava o mesmo quando performavam a sua defesa. Canalhas que somos, fazemos tudo isso como se preocupados com a cidadania fôssemos, mesmo que na prática façamos quase nada em relação a esse assunto que, aliás, é de uma abstração tamanha.

Em nosso país, ao menos no cotidiano, é um esculacho pronunciar a palavra cidadania, como se ela fosse portadora de um sentido preciso, assim com obtemos em expressões como doença, morte ou nascimento. Em geral, a totalidade dos termos que se remetem ao estado de direito, às instituições ou aos três poderes, são abstratos o bastante para necessitarem aprofundamento teórico mais dedicado.

Muito mais genuíno tomar esse léxico como palavras de ordem que de fato são ou então chicanas para que se aumente de preço político. O fosso existente entre o comum dos mortais – pense nos motoboys, nos caixas de supermercado, nos zeladores de prédios ou os frentistas de postos de combustíveis – e aqueles que sabem jogar com o esconde-esconde dos significados desses termos é o mesmo de sempre, isto é desde o primeiro império.

Não é exatamente isso que constatamos quando acompanhamos um julgamento em alguma instância superior do judiciário? O mesmo ocorre quando se busca saber algo mais sobre uma nova alíquota de um imposto qualquer e temos a sensação de estarmos nas trevas. Pense que o sistema é feito para funcionar assim, com indignações oportunas e com a maioria de todos nós, não entendendo nada do que está acontecendo e até quem defende que isso seja resolvido faz parte do problema. Falar sobre valores democráticos não custa nada, nada se perde e até pode se ganhar alguns pontos na luta política. Essa conversa não altera os números da bolsa e nem provoca aumento de inflação

A distância com outras nações em que a democracia deitou raízes mais profundas aparece quando damos conta que ninguém gasta seu tempo procurando filosofar sobre o que vem a ser a cidadania ou se valer da lembrança do direito à liberdade como se fossem símbolos mitológicos repletos de duplo sentido. Pelo contrário, no lugar dessas palavras o que se encontra é uma base de proteção contra o que não seja compreendido na relação de compra e venda de algum produto na cobrança de um imposto. Sim, nada é perfeito, contudo o que para nós é uma fantasia, para eles é uma realidade bem concreta. Será que a experiência de guerras e o passado de revoluções estão na origem dessa atitude?

É por isso que, em nosso caso, temos dificuldade de compreender por que se defende a democracia num momento e em outro deixa-se de se preocupar com ela. Tem-se a impressão de que contemplamos uma fachada que impede de se perceber o que de fato está ocorrendo, quero dizer, todo tipo de acordo de bastidores que possibilita a continuidade do descalabro de longa duração.

Finalmente, outra possibilidade a ser explorada é a seguinte: dependemos tanto do estado aqui no Brasil que de certa forma nos tornamos reféns e convivemos com um castelo de cartas de medidas e leis que, mesmo que feitas para não funcionarem, alimentam uma máquina que funciona na epopeia do nosso dia-a-dia. Todos sabemos, ou deveríamos saber, que o futuro de nossas vidas irá nos conduzir à dependência ainda maior do que nos chega através das instituições públicas. Previdência, baixos ganhos e saúde. Tudo isso no momento em que menos teremos forças para o trabalho, o que em nosso país se perfaz em uma defesa frente a violência que os governos sucessivos no impingem. Acredito que por isso mesmo, a política aqui praticada seja sempre um trending topic, o que está mais longe de acontecer em países em que a economia não dá sinais de atribulação.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.