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Dois mundos incomunicáveis

As atuais democracias têm facultado o espaço para o outsider de tal forma que estamos nos acostumando com possibilidades que, mesmo parecendo absurdas, levam à suspeita de que sejam verdadeiras. Que a democracia é o lugar para os oportunistas, Platão já apontava na República, entendendo que é esse o tipo de governo que antecede à tirania.

Especulemos aqui quanto aos motivos que levam às escolhas políticas contemporâneas que podem passar por qualquer tipo de figura que conte com credibilidade imediata. Descontando aqui as situações em que nomes não supostos pela mídia mais tradicional podem ser escolhidos pelo simples fato de que atuam há algum tempo na política, sendo então profissionais. Com isso, quero dizer que há distinções entre as escolhas de Jair Bolsonaro, Lula, Donald Trump ou Pablo Marçal.

Esqueçamos por alguns instantes de toda a metafísica que tem dado suporte à democracia e a tomemos como o formato creditado como mais razoável para se colocar ordem no galinheiro. Todo o resto sendo uma secularização da fé. O que eu quero apontar é que a democracia enquanto transcendência exime os agentes políticos da responsabilidade que se tem sobre os rumos desse sistema de governo. Acreditar que temos pessoas que são defensoras de sua permanência e outros que desejam um rompimento parece ser o drama mais oportuno para a exibição de virtudes ao público. Não se trata de qualquer público, mas sim, daquele que está versado nessa língua que é repleta de significados e valores, aqueles que o sociólogo francês Pierre Bourdieu soube bem representar na sua concepção de capital simbólico.

Melhor seria se nos livrássemos dessa capa e somente olhássemos para a política de um modo que fosse destituído de qualquer tipo de identificação ou de empatia. Agíssemos assim e manteríamos uma distância segura quanto a todos que se travestem de defensores do bem comum, o que, na nossa história, temos dificuldade de se deparar até em um passado distante. A crença na salvação através das ações de políticos bem-intencionados tem sido a nossa sina de tal modo que uma em cada duas gerações tem o seu Getúlio, Castelo Branco, Lula ou Bolsonaro para serem colocados nos altares da religião da política.

Uma cultura assim conta com o suporte dos que se julgam letrados e que desfiam suas artimanhas como fazedores de opinião que são. Em relação ao início de nossa especulação, esse pode ser o motivo de percepção de crise da democracia. A pessoas que votam, me conta um pesquisador, são poucas e as que não votam, estão aumentando. Isso nos faz recordar que em Atenas a experiência democrática poderia ser comparada à escolha de um presidente de clube de uma cidade de qualquer país.

Não nos afastemos da nossa proposta inicial: o que nos conduziu à fadiga da democracia – uma metáfora pobre uma vez que não se julga um sistema político a partir da subjetividade – tem mais a ver com a qualidade das críticas daqueles que a defendem e dos demais que a atacam. Troquemos democracia por qualquer outra palavra que não tenha nenhum tipo de respaldo mais profundo e creio que a contenda venha a continuar.

O que dá suporte ao aparecimento de outsiders é a expectativa – sempre frustrada – que tem sido apresentada como redenção. E o fato disso nunca acontecer, uma vez que não provoca contradição alguma, dá vida às tentativas infinitas de chegada ao poder. A ausência de referências dificulta ainda mais a atmosfera do fazer político no Brasil. O empenho na desconstrução fez muito mal a uma cultura que, como a nossa, pouco erigiu. Algo muito diferente do que aconteceu na Europa ou nos Estados Unidos, locais em que ao menos há um convívio entre visões opostas de mundo. Resta dizer que se tem ali um circuito intelectual que pode vir a comportar diferenças, ainda que isso tenha se tornado mais difícil nesses tempos das guerras culturais.

A politização de quase tudo nos conduziu às mudanças das regras do jogo enquanto ele é jogado sendo que alguns poucos possuem as credenciais para que isso venha a acontecer. Além disso, há uma grande distância entre o que passa pelas mentes daqueles que veem a realidade através dos vidros escuros de seus caros blindados e a grande maioria que a vê a partir das ruas.

Os agentes dos três poderes fazem o possível para fazer crer ao povo que a democracia é um sistema cujo nome é continuamente proferido em vão. Larry Bartels (Democracy erodes from the top: leaders, citizens, and the challenge of populism in Europe. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2023) bem anteviu essa situação, quando se serviu de pesquisas de opinião para constatar que a crise da democracia, do ponto de vista popular, é um falso diagnóstico. Trata-se muito mais da culpabilização de quem tem nada a ver como o que por ora acontece.

O que deveria nos preocupar não é exatamente a crise da democracia, uma vez que ela somente pode ser visada de um modo objetivo. O que poderia nos mobilizar é a baixa qualidade dos nossos entes políticos, estes que estão nos mais altos postos dos governos que começam e que terminam. Dividamos o butim entre aqueles que gritam hurras à democracia e os que a atacam, todos eles servindo-se do mesmo recurso da camuflagem para que tudo continue como sempre foi. E como o poder não permite vácuo nem ausência, o pior dos mundos pode bem ser o melhor ambiente para a classe dos políticos que temos no Brasil.

As perguntas que cabem, enfim, são as seguintes: se as coisas estão muito ruins, será que elas não estão muito boas para alguns? Ganhará a política nacional em propagar a mensagem da democracia em crise? E de modo recíproco, a que trunfos têm acesso aqueles que divulgam a necessidade do rompimento da ordem constitucional?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.