
O Brasil segue o figurino internacional no que diz respeito aos aparatos de uma república. Temos os três poderes; ao menos eles são reconhecidos por seus nomes. Há uma cidade específica para eles, sendo Brasília o palco da encenação política. Tudo ali é incensado como se de fato fosse sério. Tudo feito para enganar visitantes ilustres que podem se empolgar pela arquitetura e urbanismo estatais.
A mídia faz coro a esse faz de conta e os jornalistas divulgam a continuidade entediante da política que ali se faz, as interversões econômicas que ninguém compreende ou os casos mais rumorosos de corrupção que se alternam e se repetem. Contudo, a persistência do nosso periodismo, em classificar as matérias em política, economia, esportes ou cultura é um equívoco. Deveria existir apenas uma editoria: o crime organizado. Em se tratando de nosso país, é muito difícil encontrar a fronteira entre o que é legal e o que não é.
Vejam essa história. Conhecidos meus entraram com uma ação na justiça há uns bons anos. A causa se alonga a perder de vista e as informações que chegam a eles são picadas, simulando a importância que não possuem. Seria algo como se concentrar na marca da maçaneta ou da tampa da panela em uma investigação de latrocínio ocorrido fora do domicílio. Meus amigos me contam que receberam um WhatsApp do advogado, dia desses e que dizia que a causa tinha sido vitoriosa. E, para comprovar, enviavam em anexo, o auto do processo com os nomes, CPFs e endereços de toda a família. Tudo isso, enfim, era nada mais que uma tentativa de golpe. Conversando com outras pessoas, elas me disseram que a mesma coisa tinha ocorrido com elas.
Minha pergunta é: são os buracos das ruas, o rombo eterno do orçamento, o impeachment de um presidente, a eleição de um político de direita, a votação de uma emenda no congresso ou a decisão de um campeonato o que importa verdadeiramente? Pergunto ainda mais: quais são os afetados por essas situações ilícitas e quem não é?
Quem de nós não se questiona que, se num passe de mágica, tivesse acordado transformado em um político de grande calibre ou um juiz, o mundo nos sorriria de uma maneira absolutamente franca? Um amigo meu me diz que, no Brasil, as leis são criadas para se aumentar o valor da propina. É aqui que mais nos afastamos de Kant. Quando conhecemos o que é correto a ser feito, investimos mais no errado. Naturalizamos o crime de tal maneira que viver em nosso país é um exercício constante de aceitação das ilicitudes.
É assim que o poder é uma fachada que funciona para a cobertura de todos os envolvidos no crime. Pergunte-se do porquê da existência das multas de trânsito. Para que as ruas fiquem mais seguras? Longe disso. É somente um meio do estado de achacar o cidadão e pegar mais grana. E tudo isso continua uma vez que há um acordo tácito que impera no Brasil. Deixe que roubem, pois roubo também.
Você, como eu, pensa em soluções exóticas? Eu imagino leis que obrigassem os políticos e magistrados a morarem em favelas, a terem seus filhos estudando em escolas públicas e somente podendo ter o SUS como plano de saúde. Colocando desse modo, fica visível que estamos falando da realidade brasileira como uma punição e é por isso que a elite pública nacional passa longe de tudo isso. As coisas continuariam as mesmas?
Uma amiga minha questionava o povo que se surpreende com o muro que separa o Estado de Israel dos territórios ocupados pelos palestinos. Para ela essas mesmas pessoas vivem em condomínio ou edifícios que são verdadeiros bunkers. De fato, a galera ilustrada joga conversa fora quando bebe o seu vinho falando essas lorotas que pegam bem. Diga-me aí quem é capaz de distinguir o crime do que é considerado legal em nosso país?
Como explicar para um gringo que o jogo do bicho é proibido por aqui? E como proceder em relação aos gatos que encontramos nos postes de rua da periferia? O que dizer sobre toque de recolher ou sobre as milícias que vendem segurança nas capitais brasileiras? Alguém aqui já se deu conta que as motocicletas que fazem entregas já não param mais nos faróis, que andam na contramão, atravessam as calçadas e ciclofaixas, tudo isso, de boa e sob luz do dia?
Nada disso vai nos surpreendendo uma vez que os exemplos vindos do poder são igualmente surreais. Acordasse você um juiz e os privilégios seriam chamados de prerrogativas. Seu imposto sobre a renda seria diferenciado, suas roupas seriam bancadas pelo Estado e você poderia ter motorista particular e tudo o mais que lhe recompensasse por não viver como a maioria dos brasileiros.
Que o nosso país nunca teve empatia por Kant é uma certeza que se constata a cada dia. E se Kant tivesse nascido no Brasil, seríamos privados do imperativo categórico, a não ser que ele fosse o contrário do que se propôs, ou seja, que o imperativo determinasse o empenho para o dolo.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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