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O constrangedor silêncio nas bolhas digitais

Como podemos manter um distanciamento discreto em relação a um escândalo de corrupção que se vale dos salários dos aposentados? Esquema de pirâmide, sem dó nem compaixão e instalado no governo da República. Não se trata de um governo A ou B, mas da corrupção envolvendo instituições federais e os pagamentos realizados pela previdência depois de décadas de arrecadações mensais ou de pagamentos voluntários.

A docilidade do brasileiro chega a ser absurda até mesmo porque o roubo não tem ideologia e nem partido específico, apesar de situações como essas se repetirem com frequência em governos de esquerda. Mais uma vez, não se trata de perseguição, mas sim de uma constatação. Para além das teorias e ciências políticas, o que se nota exaustivamente é a ausência plena de domínio técnico ou algo mais simples: prevaricação.

A divisão de renda ou a busca pela igualdade não poderiam ser confundidas com a aceitação de fraudes, muito menos de achaque aos rendimentos daqueles que se aposentaram, mesmo que ainda continuem trabalhando. O cinismo desconhece fronteiras e limites em nosso país. E o silêncio se torna mais constrangedor uma vez que pontual e direcionado.

Novos candidatos devem aparecer e se contarem com a empatia dos bens nascidos e educados, terão oportunidades para cruzarem esses limites sempre podendo ter a acusação aos outros como uma saída. Nosso problema nesses casos é sermos concessivos com o dolo, na medida em que alguns deles podem ser justificados e outros não. É assim que muitos aprenderam a saudar as revoluções, mesmo que elas tenham realizados saques e confiscos. Daí para diferenciar o que se passa com o crime organizado se torna difícil, para não dizer, incoerente.

E sobre esse caso, acompanhamos recentemente a negativa, ainda que informal, de que as principais gangues do crime organizado aqui do Brasil sejam classificadas como grupos terroristas, uma vez que não possuem uma ideologia que lhes dê cobertura para o que fazem. Conclui-se que somente praticam o crime motivados pelo lucro. Troquemos os sujeitos dessa sentença e podemos pensar o mesmo dos governos que se seguem no Brasil: não possuem ideologia e estão apenas pensando na maneira mais eficaz de se lucrar. Acredito que o disfarce ideológico sirva exatamente a uma finalidade que é a de manter as coisas como sempre foram, mesmo que passe a impressão de que há preocupação com o país e da parte do eleitor, que ele é cioso em relação ao bem público.

Coube ao historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927) cunhar uma frase que mesmo que muito mencionada, faz todo o sentido e sempre está atualizada. Dizia Capistrano que a constituição brasileira deveria ser assim: “artigo primeiro: todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara; artigo segundo: revogam-se as disposições em contrário”.

O sentimento contido nessa síntese é o da repetição dos escândalos de corrupção. Mas, o que pode ter dado suporte a essa interpretação é o fato de Capistrano ter vivido uma alteração radical na história brasileira que foi a passagem do governo imperial para o republicano. Consideremos essa mudança como um modelo referencial de outras que ocorreriam, mesmo que de menor monta, mas que foram vividas com grande intensidade. Revolução de 30 – que revolução não foi -, retorno à democracia no pós-guerra, golpe militar em 1964, campanha pelas eleições diretas em 1984, dentre outros casos.

Para cada um desses instantes, teve catarse, mesmo que sem purificação. Houve expectativas que cativaram e envolveram milhões de pessoas. E todas conheceram o fracasso expresso nas denúncias de corrupção ou no ataque aos cofres públicos. É exatamente por isso que recorremos aqui ao conceito de longa duração. O Brasil somente se permite conhecer quando tomado ao longo dos poucos mais de cinco séculos de sua existência enquanto uma nação nos moldes modernos.

No entanto, o tempo futuro poderá nos sinalizar que perdemos todos a partir do modelo de governo escolhido após a chegada dos portugueses, o mesmo podendo ser dito em relação à tragédia da escravidão que se caiu sobre todos nós do modo mais infeliz possível.

Nosso percurso histórico bem poderia nos fazer reconhecer que qualquer tentativa de propaganda patriótica somente pode ser recebida como escárnio. No mais, seguimos em nosso cotidiano, preocupado com as contas, a segurança, nossa saúde e tudo o que venha a nos humanizar.

Quando muito jovem, eu acreditava que a melhor saída do Brasil era o aeroporto.

Roubar na aposentadoria é o fim da picada e silenciar-se nas bolhas digitais sobre isso é, de longe, um grande objeto de estudos para o comportamento político.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.