
A presteza em acreditar no mal sem examiná-lo o suficiente é efeito do orgulho e da preguiça. Queremos encontrar culpados e não queremos nos dar ao trabalho de examinar os crimes.François VI (1613-1680), duque de La Rochefoucauld
Dois assuntos distintos me conduzem à escrita tendo a vaidade como tema. O primeiro deles parte de uma expressão que tenho escutado de diversos interlocutores que fazem pronunciamentos e se vem às voltas com o enfrentamento da audiência. A fala é aquela que, de modo assertivo, adverte que vivemos em uma transição, um momento, fase ou período mais crítico da história, sem comparação com o que tenha ocorrido no passado. O passado visado aqui é aquele que se mostra submisso ao presente, o instante em que essa fala deseja repercutir.
O uso dessa retórica pode se configurar de modo bipolar. Assim, palestrantes motivacionais a usam como meio de estimular e envolver o seu público em suas conversas, de modo a parecer que preparam com generosidade o alcance de uma mais bem sucedida performance no novo mundo que se avizinha. Entenda-se: há otimismo nessa consideração, mesmo que não se possa comprová-lo, checar a hipótese em relação à sua falibilidade ou qualquer coisa que se aproxime disso pois, do contrário, não estaríamos falando de sofismas.
Uma outra dimensão desse discurso se vale dos mesmos superlativos que investem no apocalipse e na chegada do juízo final. Trata-se então do uso da retórica como meio de alertar a todos que o fim se aproxima a não ser que recorramos a uma alternativa através do coletivo. Essa uma outra hipótese que jamais poderá ser checada, mas que pronunciada com impostura, tende a contribuir para que a audiência se sinta culpada. Aqui, é um uso secularizado dos sermões cristãos e que ganha nova vida nos discursos ativistas. Nesse tipo de fala que mais parece um grande ralho com pitadas de paranoia, quem leva muito a sério enfrenta uma bad trip por alguns minutos.
A vaidade se manifesta de modo indiscreto tanto no primeiro quanto no segundo caso. Pode-se dizer que inclusive de modo semelhante. Os dois tipos de palestrantes explicitam as suas vontades de poder quando se postam como arautos do futuro, embora em tonalidades diferentes e discordantes. Em uma situação, a manifestação bem pode ser percebida como o preparo de uma mão-de-obra, cuja condição é a de ter que se adestrar para os cenários que os aguardam: o futuro é logo ali e ele já está pronto.
Na segunda manifestação, a vaidade ganha relevo de um modo mais sofisticado, como tende a ser quando há uma aliança com a paranoia. É por possuir um acento depressivo que ela ganha corpo no privilégio de se ter consciência de que a vida caminha para a extinção. E se essa criatura não é atingida pela angústia mais profunda é porque ela tem uma solução. Manter-se no niilismo após ter testado as mais variadas formas de alívio metafísico é coisa para poucos.
Falas elaboradas para provocar empatia e chamar a atenção dos espectadores valem-se das expectativas ali presentes. Quem está como ouvinte em uma situação dessas se assemelha a um refém, sendo que se deixar o evento é uma possibilidade, o estremecimento de relações através de constrangimentos é um alerta, herdeiro bastardo da boa educação.
Podemos dizer que em ambas as situações passa-se o tempo, o jogo segue, honram-se compromissos e a caravana passa. Contudo, não deixa de nos atrair a possibilidade do desvelamento e da percepção do que de fato acontece. É assim que as falas mais entusiastas em relação ao que se julga progresso podem ser tomadas como terríveis uma vez que se leve em consideração a necessidade de adaptação ao mundo do futuro sob o risco de se tornar um fracassado.
Já o ativismo se vale da concepção de progresso como uma perversão e clama pelo retorno aos modos de vida ancestrais guiados pelo animismo. Nesse caso, percebe-se uma licença autoral para se saudar o passado sem que seja visto como conservador. Olhamos de modo oblíquo e tudo se manifesta como sintoma e se retiramos o véu da denotação, constatamos que estamos defronte de uma leve patologia que se não causa mais transtornos, apenas faz com que a pessoa seja notada como chata. Em situações como essas, penso em como esse ser é no seu cotidiano, quando submetido às restrições como fome ou sede ou outras como atrasos de voos ou fechamento de aeroportos.
Imagine qual não será a sua resposta quando querer sobreviver por mais tempo nesse mesmo mundo à deriva. A vida longa é a grande aposta do mercado nos tempos presentes.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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