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Há uma Gaza em cada esquina do Brasil

Por que alguns países do mundo se sentem à vontade para julgar e demonstrar indignação contra a violência cometida em uma guerra? Será que o fazem para ocupar o corpo diplomático que muito pouco tem a fazer, a não ser viajar para trocar flâmulas triangulares e criar protocolos inúteis? Agem assim por não enfrentarem problemas semelhantes? Ou o fazem para encobrir o que de pior ocorre no cotidiano da crueldade naturalizada?

Na política internacional, algumas ocorrências alçam a condição de estocadas que podem ser dadas uns contra os outros, sem maiores preocupações com as réplicas. Demonstrar humanidade a partir das dificuldades alheias mantém mais a chama acesa do que vem a promover algum tipo de alteração mais profunda. Houvesse algo parecido com racionalidade na política e muitas nações poderiam contribuir de modo direto na resolução do problema que motiva as reações beligerantes. Refugiados poderiam ser acolhidos, materiais de construção e mão de obra seriam enviados e, mais importante, forças especiais de combate ao terrorismo como modo de erradicar o mal que persiste nesses locais. No entanto, não o fazem, pois se resguardam no mantra do respeito à autonomia dos povos. Mas não se percebe essa preocupação quando se entra na vida da outra nação e se sai por aí prescrevendo o que deve ser realizado.

Acredito que existam outros motivos. Reino Unido e França se unem na preocupação com crimes humanitários no Oriente Médio. Será que é sobre isso mesmo que se fala? Seguramente, não. Trata-se de uma ocupação de espaço internacional – mesmo que muito restrito – como meio de se manter em evidência, aliás, o que se espera das nações mais poderosas. De perto, todas as lideranças sabem que essa situação está longe de ser resolvida, sendo que o passado as provê de inúmeras justificativas para se supor que nada irá mudar.

Em um mundo dominado pelo cinismo, haverá espaço para que alguns governantes queiram nos convencer que estão verdadeiramente preocupados com a violência, com a fome ou a saúde mundial? Penso nisso toda vez que vejo um deles transparecendo felicidade e sorrindo em uma manifestação pública. Eles não perdem um minuto de sono por conta disso. Na verdade, eles sequer estão falando desses assuntos quando se manifestam diretamente sobre eles.

Vejamos o caso brasileiro, um dos mais interessantes uma vez que um vexaminoso zero à esquerda. Somos uma nação que não altera a ordem dos fatores. Sei que não podemos quebrar e que isso pode provocar alguma turbulência mundial. Penso nisso quando me recordo do México que viu a sua economia se estrangular no início dos anos 90 e que teve que contar com o aporte de bilhões de dólares para diminuir os efeitos deletérios na ordem mundial. Algo parecido poderia ocorrer em nosso país.

Mas, para manter-se no percurso que havíamos iniciado, o Brasil não conta nada diplomaticamente e nenhuma nação do primeiro mundo sequer presta atenção no que a nossa diplomacia fala ou deixa de falar. Quando lideranças brasileiras se manifestam, eles estão cultivando o seu pedaço do jardim e querendo se colar num assunto que já veio pronto. Oriente Médio é um tema que repercute mundialmente e por isso muitos países querem aproveitar dessa onda.

Busquemos uma correlação entre o que o nosso país propõe e o que ele faz dentro de suas fronteiras. Acusamos nações por perpetrarem bombardeios na caça aos terroristas. Ninguém parece duvidar das informações sobre crimes de guerra que são fornecidas pelos próprios terroristas. Acredita-se num tipo de Data Hamas sem que haja o mais leve ceticismo.

O que o Brasil tem a ensinar? Que deixamos que o crime se alimente nas instituições e que se alastre por onde quer que haja alguma possibilidade de roubo. Abandonamos os morros ao crime organizado, permitimos que a eletricidade seja furtada e que as milícias atuem como fornecedoras de segurança e de serviços conhecidos como públicos. Bradamos contra a privatização de um parque municipal, mas damos as costas para o que ocorre nas ruas que são dominadas pelos narcos. Não nos incomoda que a lei do mais forte permaneça e que o cidadão comum que não tem blindagem de carros ou um plano de saúde eficiente fique à mercê dos achaques de criminosos. Temos dificuldades de demarcar as fronteiras do que é ilegal e do que não é. Naturalizamos a violência de tal maneira que quase nem a notamos mais.

A contribuição brasileira seria sugerir que tudo continue como está, que o crime floresça com vigor e que faça a sua privatização do que é público, sem que, com isso, a elite venha a lastimar. Ela já está muito longe dos lugares mais perigosos e há muito se entrincheirou nos condomínios mais bregas e protegidos por segurança privada.

As reações de algumas nações contra o terrorismo – que todos sabemos que é sócio dos narcos – causam indignação falsa em nosso país porque podem nos lembrar da nossa acídia conivente e do fato de que não estamos nem aí para os mortos e os não nascidos. Um país como o nosso não poderia ter a prerrogativa da indignação e se a manifesta, o faz por hipocrisia e pela miséria que é a de se referir aos conflitos que desconhece somente para parecer ter a benevolência que nunca manifestou para os seus próprios cidadãos. Temos uma Gaza embaixo do tapete e os governos que se sucedem não estão nem aí para a resolução. Uma campeã nacional: Crime e Corrupção Ltda. O Brasil pode ensinar a Israel a como fazer uma parceria com o crime, rifando o seu próprio povo em troca da manutenção de privilégios de uma elite encastelada no poder desde as Capitanias.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.