
Em uma grande obra (O processo civilizador: uma história dos costumes. Volume 1. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994), o sociólogo Norbert Elias deparou-se com o que seriam os primeiros textos que abordavam as normas de conduta em sociedade e que ficariam conhecidos como manuais de etiqueta. Tratava-se de um indício de que uma nova categoria social estava atenta à necessidade de forjar um conjunto de normas que os tornassem reconhecidos e legitimados socialmente. Essa seria a primeira de muitas outras oportunidades em que a atenção com a aparência – jamais com o conteúdo – protagonizaria os valores dessa classe social.
Destituídos de qualquer perspectiva de serem criadores de valores, cabia aos burgueses estarem atentos às atitudes dos nobres, o bastante para que pudessem reproduzi-las no cotidiano. É por isso que Elias topou com uma compilação rigorosa do que era visto como correto ou não e isso do ponto de vista dos costumes entrelaçados como uma moral em gestação. Clichês como aqueles que apontam a necessidade de demonstração de decoro e diligência logo se somariam ao esboço do tipo burguês que iria proliferar nos séculos que viriam a frente.
Pérolas citadas por Norbert Elias recomendavam que não se cutucasse os dentes com a faca usada para trinchar as carnes servidas num jantar e que se evitasse escarrar no chão de uma casa, mas se o fizesse, que se colocasse os pés para esconder os vestígios. Que se controlasse os gases em ambientes sociais e que não limpasse as mãos ou lábios com as tolhas de mesa.
Para Elias, Erasmo de Rotterdam em De civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças), de 1530, demarcava o conceito de civilité ao escrever:
“Com grande cuidado, Erasmo delimita em seu tratado toda a faixa de conduta humana, as principais situações da vida social e de convívio. Com a mesma naturalidade fala das questões mais elementares e sutis das relações humanas. No primeiro capítulo, trata das “condições decorosa e indecorosa de todo o corpo”, no segundo da “cultura corporal”, na terceira de “maneiras nos lugares sagrados”, no quarto em banquetes, no quinto em reuniões, no sexto nos divertimentos e no sétimo no quarto de dormir. Na discussão dessa faixa de questões Erasmo deu um novo impulso ao conceito de civilitas”. p. 72.
De acordo com Elias, é o conceito de civilité que abre caminho para a distinção entre civilização e seu oposto, o inculto, incivilizado ou bárbaro. No estudo aqui citado, seguem-se muitas referências específicas que riscavam as fronteiras entre essas ambições, uma que se valia da tradição da oralidade e da observação de referências de hábitos e costumes sociais e uma outra, que se validava na lavratura.
O que me moveu na recuperação dessa obra foi a percepção de que costumes sociais, em especial quando em meio à burguesia letrada, se confundem com a gradação moral. E tudo isso mantendo a preocupação com os olhos da sociedade, digo aquela de pequena monta e que nos interpela no nosso dia a dia.
A minha principal motivação foi dar-se conta de que vivemos em um contexto em que a política se cruza com a moral e, por conta disso, supus a materialização de um manual do militante contemporâneo. Vejo que falar de política hoje, em certos ambientes em que a militância digital se manifesta, conta com fazer elogios e ataques como se fossem imparciais, mesmo que impeçam qualquer tipo de réplica. É assim que um caráter digital vai se formando no fluxo da aceitação de ilícitos que uma vez ocorridos com quem se gosta, nada mais são do que histórias mal explicadas.
Vejo a etiqueta militante na preocupação cirúrgica com o domínio dos talheres específicos para queijos ou para peixes juntamente com os olhares que conferem estar do lado da política certa e da defesa da democracia que quando atacada pelos outros, deve ser defendida nas redes sociais. Noto a atmosfera da década de 60 sobreviver por instrumentos bem como a sua estética, nada ressignificada. Mas, o pior de tudo, é crer que aquelas ideias, da direita à esquerda, ainda resistam ao cinismo contemporâneo.
O manual de etiqueta do militante contemporâneo é o mais natural herdeiro da moral burguesa e isto por conta da preocupação imperiosa com a imagem pública e por unificar tudo o que reflete a moral e os costumes à vida na cidade, o que em grego se diz política.
Uma esquerda aburguesada é o pesadelo e o flagelo dos ideais de Karl Marx e Friedrich Engels.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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