
Não há no Brasil a expressão de uma prática de abnegação. Confundimos oportunamente esse significado com sua aparência, o que foi especialmente notado por Otto Lara Rezende.
A elite é uma só e ela trata com violência tanto a infra quanto a superestrutura. O nosso enfant terrible é o sucessor espivetado do dono dos bancos ou das mineradoras. A mais valia é terceirizada ainda que a conta de destino seja a mesma.
A nossa preocupação com o outro teria chegado até nós a partir dos jesuítas. A primeira metafísica a que fomos introduzidos também. Antes disso, era só cortar árvores ou cana de açúcar. Não houve preguiça por aqui, mas sim o aproveitamento de tudo que pudesse render alguns cobres. Contentar-se com pouco nos apareceu como destino já nos primeiros 30 anos após a chegada de um povo triste e que revestiu-se de ressentimento como meio de contrabalançar as saudades de sua terra infértil e repleta de preconceitos anacrônicos: a perseguição aos judeus é a mais pura demonstração de ódio pela cultura e pela liberdade. O acanhamento com o que não seja provinciano é o fado dessa nação deprimida na alma e que convive muito mal com a curiosidade.
Coube aos jesuítas a lida com os indígenas, em especial, os mais jovens e mais vulneráveis uma vez que afastados de toda experiência de preservação. Mas se dedicaram-se aos nativos, enfiaram as suas cabeças na terra em relação aos africanos. E aqui, a nossa mais terrível herança. Os mais ricos dentre os mais poderosos de hoje não são filhos bastardos dessa escolha histórica. E se o caldo cultural contemporâneo nos supre de bom mocismo e da preocupação com os desfavorecidos, o faz para honrar as modas que se iniciam e que caem no esquecimento. O ponto aqui não é cancelar a pessoa que é bisneta de um escravocrata, mas perceber que não se rasga dinheiro e nem se perde os anéis. Nossa elite continua canalha até mesmo – ou inclusive – por fingir humanismo quando fala de futebol ou faz ode ao tropicalismo mais hipócrita.
O cristianismo que aqui se decantou cobriu-nos de uma aparência diligente mesmo que passível de ser raspada com as unhas. Desde cedo, o clero se viu irmanado com doutores, juízes e políticos, tudo o que era necessário: dominar as leis e o poder e ainda fingir a crença na vida eterna e na redenção de todos os pecados, o que não era pouca coisa. Nossa elite nascente colonizava o passado, expropriava o presente e consagrava o futuro.
Nossos poetas e cantadores são todos herdeiros dessa tradição infame ainda que devidamente atualizados nos tempos que compartilham. Pense em alguma figura de cultura de qualquer tempo que, em nosso país, não confirme esse destino: a referência sendo sempre a do português colonizador. Desconhecemos o enfrentamento e a seleção natural à brasileira preservou o afastamento das contradições a não ser aquelas que são apropriadas para a permanência de tudo o que foi referenciado no tratamento para com a metrópole. Obter ganhos com as contradições é a habilidade em que se destacam os nossos compositores, os mendigos de aplausos que encontram sintonia com um povo obcecado como eles em se autopromover.
A onda melodramática de justiça social que tem tomado os países mais ricos do mundo agradou a galera por aqui que exibe uma aspiração fake pelas boas causas. Encontrar virtude ou gente virtuosa é um périplo digno dos feitos das grandes navegações.
Arriscamos a nos tornarmos uma Venezuela, aquela referência de ditadura do bem que tanto agrada quem poderá sempre sair do Brasil contando a prosa de que foi exilado. Elites de primeiro mundo sempre tem o que temer pois os monstros podem mesmo sair da lagoa. Não no Brasil.
Afogados em tudo o que é superficial, nosso conteúdo político faz emergir os preconceitos de toda ordem. As homilias do passado foram substituídas pelas campanhas de marketing. A ausência de matrizes quanto à produção acadêmica, nos transformou em pastores do falso apocalipse até mesmo porque o que se deseja é a persistência da exclusão. Nossas universidades tornaram-se o lugar privilegiado de workshops das causas atualizando a estética da miséria que não sai de nós, não sai de nós, jamais. Nutridos que somos nas sinecuras, demarcamos a nossa apropriação dos objetos de estudo e nos comportamos como os cães que marcam o seu espaço com a urina. Mas estamos longe dessa pureza quando blasfemamos sobre a democracia, o que em nosso país é matéria somente da antropologia posto que o que mais nos atrai é a ditadura e o controle daquilo que possa ser controlado.
A vaidade de classe permanece na exibição do sentimento de justiça social mesmo que a recíproca esteja longe de ser verdadeira. Nossa demonstração de humildade é somente uma senha para o convívio com o crime que privatiza tudo, ainda que nos dediquemos a fazer parecer que os vilões são os banqueiros. Nada. Tudo não passa de uma escaramuça doméstica e que é resolvida na atmosfera da longa duração que em nosso país mantém tudo como está e em seu devido lugar. Fazemos da miséria um meio de acumulação de capital e da hipocrisia, o pesadelo do socialismo dito científico.
Nada fizemos por nós. Nenhum futuro foi pensado. Zero de preocupação com os não nascidos. Caminhamos para o envelhecimento e a tragédia nossa de cada dia nos prepara para a ausência de qualquer tipo de estranhamento. Nada disso nos causa algum tipo de indignação, mas sim de excitação especialmente quando imersos na epifania que nos cabe quando do contato com alguma juventude já aposentada e que nos nutre das mais piegas trilhas sonoras. Nossa hipocrisia tem a qualidade da sinestesia.
Já não me ocupo de falar da ignorância crassa sobre política e história internacionais. O platonismo dos pobres fez de nós personagens perversos que disfarçam a saída da caverna mais profunda como meio de divulgação do que de roto possuímos. Justiça é uma palavra que já não faz sentido de tal forma a pronunciamos a torto e a direito.
Mal entramos nos livros e já migramos para o consumo do conteúdo digital. Cada um de nós, tem à disposição o pensamento que mais nos agrada, sempre tendencioso e pronto para caber na distância que cobre dos olhos aos narizes. Herdamos a tensão com o ceticismo que a tudo nos incomoda, um pouquinho que seja: nossa mentira tem as sete vidas dos gatos mais escaldados.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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