Behavior

O fascínio pela novidade em nada supera a grandeza do passado

O aspecto da venerável mansão sempre me afetou como uma fisionomia humana. Seus traços exteriores têm suportado a tempestade e o calor do sol, e exprimem o longo lapso de vida com as adversidades que dentro dela se passaram. Contadas dignamente, essas formariam uma narrativa de interesse e instrução, possuiriam uma notável unidade e lembrariam o resultado de um arranjo artístico. Mas a história, que incluiria uma cadeia de acontecimentos decorridos durante grande parte de dois séculos, escrita com uma amplitude razoável, encheria um grande volume in-folio ou uma longa série de duodécimos, que poderiam ser incorporados aos anais da Nova Inglaterra. Nathaniel Hawthorne. A Casa das Sete Torres. LeBooks Editora, Kindle Edition, (p. 9)

Fazemos ficção do passado, o lugar em que encontramos as mazelas idealizadas que pretendemos superar e os pontos positivos que desejamos que permaneçam. A maioria de nós não aguentaria permanecer em contato com o passado se ele não contasse com uma trilha sonora envolvente, com atores reconhecidos e guiado por uma narrativa água com açúcar. Cabe aqui toda a recuperação das origens das causas midiáticas que são o deleite do capitalismo cultural, do marketing do sucesso pessoal e da autoestima. Nos satisfazemos com uma recuperação de um passado cativo e que se ajusta às obsessões sempre renovadas do presente.

Produzimos então uma religião materialista em que nossas preces não são feitas em silêncio, mas sim com o objetivo de divulgação de nós mesmos. Divertimo-nos com as narrativas de avanço e retrocesso, mesmo que utilizemos dessas referências de um modo bastante frágil o que se revela na impossibilidade de comprovação. Alguns poucos já pressentem que nem tudo o que ocorria no passado era fruto de atitudes e escolhas infelizes e que, quem vive no agora, não tem assim tantas qualidades positivas o bastante para superar os que já não estão mais conosco.

Acreditamos que conhecemos a história, aquela que “não foi revelada” e nos regozijamos pelo acerto na descoberta do que de fato aconteceu. E fazemos isso com a facilidade de quem deixa de levar em consideração toda sorte de controvérsias que passam pela aceitação das fontes, pela implausibilidade dos testemunhos, bem como através da ausência de suspeita para aquele que crava um juízo sobre o passado.

Falta-nos o tempo devido para o enfrentamento daquilo que chamamos de passado e que no mais das vezes, já se apresenta mapeado e julgado à nossa frente. Algumas obras de literatura mais recentes bem como as produções de cinema fazem de tudo para nos entreter, oferecendo o mínimo de profundidade e muitos ganchos com o que mais repercute na mídia das conversas que nos chegam através de muitas curadorias. Deixamos de ter o cuidado com o anacronismo e o passado nos chega a partir de recortes que dependem mais do presente do que do contexto do já acontecido.

Sugiro aqui que se tome um livro de literatura e que se faça a leitura com o gosto de quem aspira por evadir-se do mundo. Já se disse que essa foi uma das chaves de sucesso da literatura gótica que se forjou no século XIX. E imagine que aquele mundo já incomodava o bastante para que se desejasse abandoná-lo. Pensemos no que hoje nos acontece e na teia de relações infinitas em que estamos envoltos.

Autores como Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Henry James (1843-1916), Edgar Allan Poe (1809-1849) ou Ann Radcliffe (1794-1823) formam um grupo cuja obra nos retira desse mundo e nos remete ao passado dos diferentes contextos, das distintas obrigações e matizes. Lê-se com proveito e também se pensa nos tipos de leitores que se envolviam naquelas narrativas. Sobressaem-se os aspectos morais levados em consideração e que são invariavelmente muito diferentes dos que nos aparecem no contemporâneo.

Impedimentos nas relações amorosas por conta da preocupação com os julgamentos da sociedade aparecem como preocupações que hoje sequer seriam levadas em consideração. Os custos bastante altos que são requeridos pela manutenção das relações familiares ou o transtorno e o ressentimento provocados por separações bruscas que se traduzem em situações complexas. Seremos capazes de supor que uma amizade de infância seja o suficiente para que se passe uma estadia junto a um amigo que, deprimido, viva com sua irmã que se encontra à beira da morte? E aceitaríamos que o cadáver dela fosse conduzido a uma das alas do castelo na espera de que seu fim seja devidamente providenciado?

Histórias assim nos retiram do reconhecido e da dimensão acima descrita em que o passado nos aparece como domado. O estranhamento com relação ao acontecido é o grande estímulo para que sejamos conduzidos pelo brilho da literatura. Parece-nos por vezes, que os livros ganham vida própria e que respiram e nos conduzem a um outro plano de realidade sujeito a diferentes mediações.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.