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Estamos condenados à ausência de constrangimento

A imprensa brasileira entra em agonia quando os acontecimentos não previstos forçam a pauta. O stand by tedioso, que acostumou os profissionais da área a abordarem as histórias de sempre e que se remetem às relações calculadamente privadas do povo da cultura ou à oposição padrão na política, dá sinais de esgotamento. Pior de tudo é ter que colocar a máquina paquidérmica da imprensa a se movimentar ao som dos temas escolhidos pelos algoritmos. A nova zona de conforto é movida pelos trending topics.

Donald Trump tem protagonizado as alterações nesse campo e deixado os jornalistas em pânico, ao menos é o que parece, uma vez que as páginas dos jornais podem ser preenchidas com qualquer tipo de informação: há muito tempo já se perdeu o mistério quanto ao que iria se ler, bem como a surpresa ao tomar contato como o seu articulista preferido. Hoje, acordamos com notícias criadas por influencers que amanhã serão esquecidas, mas que mantêm a atenção enquanto a atenção for mantida. São tantas novidades que nem mais damos conta delas e com a ausência de critério, a eclosão de uma nova guerra se equivale ao primeiro selinho dado entre celebridades: quem se preocupa realmente com Gaza além dos antissemitas? Pessoas virtuosas, humanistas e de bom coração? Os norte-americanos têm uma expressão para isso.

Vejamos alguns temas que estão sempre à disposição e que estão prontos para serem requentados. Enxergar virtudes na política e localizá-la nas hostes de esquerda. Está aí um lugar comum que não deve enganar ninguém, mas que ganha espaço recorrente nas mídias. Se fosse bem compreendida a temática da pós-modernidade com toda a sua volúpia pela desconstrução bem poderia ter servido como bússola para quem quer que viesse a duvidar dessa lenga-lenga. Mas não. Jornais de respeito estampam iniciativas edulcoradas que refletem a busca pela igualdade de renda e já dão como cativos os leitores que irão comungar com a abordagem. Finge-se que não se sabe que a razão não produziu antídotos frente ao cinismo e que, aliada que é da ironia, não é capaz de se deparar com a virtude quando fora do solo sagrado da fé no sobrenatural.

Mais recentemente, tomamos contato com articulistas que se colocam do lado do bem e desse ponto de vista, vaticinam sobre os melhores futuros da nação, se dirigida por A, B ou C, quase todos da mesma agremiação partidária. Incrível como se tem tão certo qual é a melhor trincheira, aquela que é de bom alvitre para pessoas finas conflagrarem esses nomes. Lembrando aqui que há pontos em comum com credos religiosos, com perfis de afinidade de cultura e até com os tipos e cores de meias que são utilizadas. Num país em que o povo que se articula na política cabe numa van, isso nem chega a ser tão difícil de acontecer.

Não, não temos por aqui o hippie de direita e nem o punk com a bandeira dos Estados Unidos. Somos explícitos e muitíssimos bem comportados até mesmo porque são poucas as portas para se passar e continuar a ter abrigo mais ou menos seguro. Vá você desapontar os caciques do puxadinho da cultura que temos por aqui.

Aqueles que não admiram a esquerda quando essa chega ao poder, têm pouco espaço para falar de aspectos técnicos sob o risco de serem taxados de bolsonaristas. Não se tem flexibilidade e nem matizes de espécie alguma e isso é muito bom para a hegemonia das falas de esquerda. Somos fadados a não abordar os rumorosos casos de corrupção que foram capitaneados pela esquerda uma vez que sempre teremos a justificativa de que se trata de uma perseguição política e que não conta com a devida comprovação: como se um crime tivesse que ser registrado em cartório para ter comprovada a sua existência. O caso da operação lava-jato entra nessa conta já que tudo o que ela veio a comprovar como sendo ilicitude foi considerado ilegal, mesmo que os valores ainda sejam pagos e que políticos de outros países ainda paguem o preço do crime cometido. Mas, personalizada como foi, a operação jurídica-policial é um evento a ser retirado dos livros de história do Brasil, que aliás, somente servem para a decoreba do Enem.

A ausência de um espaço para se estar quando não se tem afinidade pela esquerda se perfaz em uma dificuldade a mais e que demonstra muito bem o estado de iniquidade política em que vivemos. Qualquer raciocínio elaborado há uns 50 anos permanece atual em nosso país, pois do ponto de vista das grandes estruturas quase nada aconteceu que veio a alterar a ordem dos fatores.

Não há lugar para manifestarmos indignação contra o que se vê a céu aberto. A obsolescência das mídias tradicionais nos oferece muitas faces de estudo. Uma delas recai sobre o gap que se encontra entre os perfis geracionais ligados à imprensa. Há gente cuja formação se deu com quem trazia uma experiência mais arriscada quando na abordagem de certos assuntos que resvalassem na política. A ditadura como um todo fez mais mal ao Brasil do que se costuma avaliar. Até mesmo quem se indispôs contra ela veio a se tornar uma referência que não conseguiu sobreviver ao cinismo. A luta pela sobrevivência mais escarnecida – nossa sina desde a chegada dos portugueses – nos ensinou a fazer negócio com tudo o que pudesse render alguns trocos.

Temos uma má relação com o nosso país uma vez que não encontramos nada de real que venha a dar suporte ao apreço ou ao agradecimento que poderíamos vir a ter por termos nos descobertos brasileiros. Só que não. Por todos os lados que olhamos, só contemplamos traições, brutalidade e risos sardônicos. Há muito tempo já se percebeu e constatou que a honestidade é uma alegoria alienígena quando tem o seu nome falado em português.

Essa sensação somente aumenta quando nos deparamos com o comércio das boas intenções ofertadas naquele espaço que já foi chamado de quarto poder. E nem mais podemos contar com a elegância trazida pelo constrangimento.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.