Behavior

Vivendo uma distopia de cada vez

O tecido esgarçado que reveste a vida em sociedade demonstra a sua persistência através do hábito que nos alcançou por intermédio da imaginação moral. A pesquisa que fazemos em público corre sempre o risco de ter superdimensionado os aspectos para os quais pendem o nosso temperamento. Nas ruas, reparamos e damos crédito aos automóveis que nos cortam sem que as setas sejam sinalizadas ou para os casos em que damos passagens e não temos ao menos um aceno de agradecimento: pode ser que os vidros filmados impossibilitem a visão dos condutores. Os mesmos vidros que sabemos serem regulamentados em relação ao nível de obscurecimento, mas que vemos aos montes em carros oficiais ou não. Topamos com carros que têm luzes de alerta e sirenes, mas que são como os de todo mundo, sem que nada indique serem de algum órgão de segurança do estado. Eles passam entre nós, andam nas faixas que querem e ninguém se arrisca a se indispor com os motoristas. Já os carros que transitam com chapas especiais ou que são de alguma autoridade policial, quem se arriscaria a entabular alguma conversa?

Nas mesmas ruas, aplicativos com localização por satélite nos mostram se alguma fiscalização está à nossa frente e por isso, temos segurança para atravessar faixas de pedestres, dirigir na contra mão, subir em calçadas e andar nas áreas demarcadas para bicicletas ou ônibus. Essa relação infantil que é a de se fazer escondido para não sofrer uma reprimenda é muito forte em uma cultura como a nossa. No entanto, esse procedimento de fazer o seu próprio código de regras alimenta a insegurança. Olhar para os dois lados antes de atravessar uma rua é um conselho que perdura até mesmo porque não se tem mais mão ou contramão, mas sim o objetivo de se chegar a um lugar em menos tempo possível. O hábito da direção fez esquecer que se é pedestre e se algo der errado, o culpado segue sendo o outro.

Esse modo de agir introjetado entre nós é a ponta mais visível de uma grande teia que cobre a nossa relação com o que venha a se estabelecer como uma autoridade. E sendo esse comportamento tão óbvio, somos eternamente previsíveis para quem se encontra aboletado no poder. Essa sendo uma reação mais do que esperada: a tibieza do brasileiro do cotidiano se manifesta na equiparação entre as suas ações escondidas – que os seus concidadãos podem ver – e o receio de que sejam notadas pelas autoridades. Já as pessoas que detêm algum tipo de poder legitimado pelo estado são continuamente valorizadas e aceitam de bom grado o temor que lhes é manifestado. Para onde quer que olhemos e nenhum sinal encontramos de república, ou seja, de que tudo pertença ou emane do povo. Nem temos sequer a prerrogativa da surpresa e o cotidiano transcorre bem quando o esculacho sai como tacitamente combinado.

Vejo em Thomas Sowell a referência de que a civilização é uma fina camada que recobre um vulcão e observo o quanto ela se enquadra entre nós. A imaginação moral que falei no início sendo o que parece persistir de virtuoso na repetição de uma prática que criou empatia entre nós, mesmo que se pareça um anacronismo de luxo e que nos encanta. Amigos me dizem que teriam faltado à nossa história os eventos violentos demonstrados no passado sejam através de revoluções ou não. Eles têm em mente os acontecidos na França ou na Inglaterra. Para eles, a cultura política forjada nessas nações dispôs a possibilidade da percepção de sinais de alerta, outra expressão para dizer que o povo pode ir para a rua e quebrar tudo. É bom que comparemos essas histórias com a nossa. Outros amigos me dizem que esse argumento é tomado pela ideologia burguesa e veem uma série de revoltas na história nacional que evidenciam as contradições que, além de apontarem para uma revolução futura, promovem o rearranjo das classes dominantes. Pode ser, mas muito dos que estão vivos hoje jamais terão a oportunidade de conferir a verdade dessa última interpretação.

O fato é que a experiência pública dos brasileiros no convívio social demonstra com clareza que o bem comum é uma fantasia. Esse posicionamento é percebido nas práticas cotidianas em relação às lixeiras, pontos de ônibus ou estabelecimentos públicos. O que pertence a todos não é de ninguém, o que equivale a crer que de nada vale e é descartável. O anonimato pode contribuir para que essas atitudes aconteçam, mas nem as câmeras de rua podem dar conta de coibir o que acontece.

O nosso passado pode ter contribuído para que esse comportamento se mantenha? Em alguma medida, possível até de averiguação mais objetiva. Somos desincumbidos da história e a desconstrução pós-moderna nos fez muito mal: a meta-história encaixou melhor nos países em que a narrativa histórica alcançou legitimação muito maior do que a nossa. Esse um risco da importação de produtos que não fazem parte do nosso habitat, por mais que queiramos emular a novidade que veio de fora. Vejo a gratuidade com que contemplamos o que nos chega através do Estado como se nada tivéssemos a ver com isso. A imagem que a classe política promove segue o mesmo percurso uma vez que se vale do populismo como meio de autovalorização: graças a mim, se não fosse por mim, no meu governo, etc. e tal. Deixe um estrangeiro a solta em nosso país por 48 horas e ele terá uma compreensão nítida sobre o que verdadeiramente somos quando agimos sem se preocupar como o melhor selfie para o Instagram.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.