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A história como protagonista

Vimos em nossas guerras mais recentes como uma opinião pública dividida e questionadora pode se converter, do dia para a noite, numa quase unanimidade nacional, numa obediente caudal de energia que arrastará os jovens para a destruição e sobrepujará qualquer esforço de contê-la. A unanimidade de homens em guerra é como um cardume de peixes que se desviará simultaneamente e sem aparente liderança, quando a sombra de um inimigo aparecer ou como uma nuvem de gafanhotos a escurecer o céu, nuvem que também compelida toda ela por um só impulso, cairá sobre as searas para consumi-las. Edmundo Wilson. 11 ensaios: literatura, política, história. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 79, 80.

Há períodos em que a política ganha expressividade e que a exibição pública de um viés se faz tão necessária que se é cobrado quando ela não se manifesta. Tempos em que gerações diferentes e com interesses distintos convivem e pensam sobre as cartas que têm, bem como naquelas que podem ser reveladas. Ambições e frustrações, desejos e intenções se manifestam com cores mais contrastantes e é preciso ter cuidado, principalmente aqueles que pouco têm a perder no instante em que escolhas significativas são feitas.

As ilusões políticas não são vendidas com esses alertas antecipados e nem têm uma maneira que ilumine o que nelas se realizou a partir de elementos fortuitos ainda que decisivos. A predominância do acaso bem poderia ser levada em consideração, o que nos conduziria a recuperar os efeitos da contingência. As cores da tragédia também seriam notadas e essas matizes iriam conferir a presença singular do destino que a tudo reduz ao pó.

Confinadas aos vícios de comportamento sem que fosse possível identificar algo mais, a participação política apresenta uma exuberância que de fato não possui. Enfatizadas ou esquecidas em meio a um caldo de cultura do qual já não temos a receita, os estímulos para o ativismo revelam um parentesco com outros hábitos que não alçaram a condição da exposição pública. Pertencentes às famílias de políticos profissionais envergam seu aprendizado desde cedo no convívio com o ofício. Os outros decidem pela política através do contato com uma miríade de estímulos indiretos e que seguramente passam pelo que há de inapreensível na educação, seja ela informal ou não.

Do modo como atualmente a conhecemos, a consciência política ganhou legitimidade a partir da provisão de sentido ofertada pelo seleto ajuntamento de intelectuais iluministas. As revoluções que se seguiram – e que ganharam esse título mais exatamente para que lhes fossem atribuídas a grandiosidade moral que essencialmente não possuem – realizaram esse roteiro de tal maneira que a liderança já aguardava pelas personagens históricas que ainda iriam surgir. Danton, Marat, Robespierre, Guevara, Fidel ou Marighella estando nos bastidores, prontos para a incumbência dessa representação.

De maneira alguma conseguiríamos justificar a presença desse aparato de atitudes num patamar solene e que divide aqueles que são convidados ou penetras, ou dito de uma maneira direta, quem pode ou não ter a aparência de possuidor de aptidão política. Nas ruas, atendendo à chamada da presença na luta por algum ideal de igualdade de direitos ou a favor da democracia, pouco ou nada será demarcado nessa direção. E os desafetos, ressentimentos e interesses mais prosaicos serão deixados debaixo dos tapetes até mesmo porque nas ruas, o que conta mesmo é a atitude. E é bem melhor que ela provoque o efeito desejado que é o de compartilhamento de propósitos como se moedas fossem.

Pátria, de Fernando Aramburu (Intrínseca, 2019) pode ser lido a partir desse viés, como uma obra em que a política está sob o controle das moiras. Estamos no País Basco, num período que vai das manifestações violentas do ETA (Euskadi Ta Askatasuna – Pátria Basca e Liberdade), até a sua deposição das armas e o fim da luta na clandestinidade. O ETA foi fundado em 1959 e depôs as suas armas em 2018.

A trama nos faz acompanhar a evolução de duas famílias que dividem entre si um cotidiano comum, caracterizado pelas escolhas cotidianas como a faculdade que se pretende cursar, o ofício que se deseja possuir ou as relações amorosas que são experimentadas. As pequenas diferenças entre as famílias ganham expressividade com o passar do tempo, em especial propiciadas pelo acesso aos bens materiais ou pelos temperamentos envolvidos de parte a parte. Tudo o mais não ganharia relevo se a política não viesse a se impor em suas vidas. Estranhamentos e ressentimentos passam a contar com justificativas. Afinidades e rancores que de todo modo existiriam, legitimam-se como se valores políticos fossem. E por se tratar de um instante em que os parâmetros institucionais são esgarçados, a prática do terrorismo conta com autorização para se manifestar livremente. 

Personagens são descritos e representados com precisão de um modo que não sabemos de antemão quem são os bons ou os maus. No entanto, como a urgência política ganha a cena, adentramos os dilemas antepostos e desconhecidos por aqueles que abraçam ou se afastam das causas que ali são manifestadas. Escolha-se na leitura, o ponto de vista que venha a ser o mais ou o menos beneficiado pela posse do que quer que venha a ser a consciência política. A persistência de uma esposa em conversar com seu marido sentando-se ao lado do túmulo em que ele se encontra nos oferece um indício de resposta.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.