Behavior

O porquê algumas causas não demandam abaixo-assinados

Há uma nação do mundo que desde o início do século XXI, convive com assassinatos coletivos, sequestro e estupros de estudantes. Nem por isso a Nigéria costuma frequentar os sites dos principais órgãos de notícia e nem os trending topics na internet. As cifras apontam dezenas de milhares de mortos nesse país e nas nações vizinhas, Chade e Camarões. Mais algumas dezenas de milhares de pessoas também morreram em meio às crises sucessivas suscitadas pela ação do grupo cujo nome é Boko Haram. Um dos militantes do grupo nos explica o que essa expressão quer dizer:

Boko Haram não significa de forma alguma que “a educação ocidental é um pecado”, como a mídia infiel continua a nos retratar. Boko Haram na verdade significa que “Civilização Ocidental” é proibida. A diferença é que enquanto o primeiro dá a impressão de que nos opomos à educação formal vinda do Ocidente, ou seja, da Europa, o que não é verdade, o segundo afirma a nossa crença [sic] na supremacia da cultura islâmica (não da Educação), pois a cultura é mais ampla, inclui a educação, mas não é determinada pela Educação Ocidental. Neste caso, estamos falando de modos de vida ocidentais que incluem: disposições constitucionais como se estivessem relacionadas, por exemplo, com os direitos e privilégios das mulheres, a ideia de homossexualismo, lesbianismo, sanções em casos de crimes terríveis como tráfico de drogas, violação de crianças, democracia multipartidária num país esmagadoramente islâmico como a Nigéria, filmes azuis, prostituição, consumo de cerveja e álcool e muitos outros que se opõem à civilização islâmica. Thurston, Alexandre. Boko Haram: the history of an African jihadist movement. Princeton: Princeton University Press, 2018. P. 16, Edição Kindle.

De acordo com a ONU, a Nigéria é considerada um dos países mais importantes do mundo. Tem, de longe, a maior população da África, 180 milhões ou mais de pessoas. Em 2050, essa nação pode ter 400 milhões de pessoas. Uma matéria da prestigiosa publicação Foreign Affairs, Boko Haram’s Resilience Its Adaptive Tactics Require a New Approach (Hilary Matfess, Dezembro 19, 2016) citava também a ONU, indicando que 75 mil crianças nigerianas corriam o risco de morte  por desnutrição.

Essas informações somadas seriam mais do que o suficiente para que nossa mídia e os humanistas de plantão acendessem sinais de alerta ou de pânico. Mas o que será que acontece para que esse tema tão pungente seja mantido sob discrição? Não tenho nenhuma hipótese conspiratória, a não ser o fato de que as notícias ligadas às nações mais ricas favoreçam muito mais a atenção de quem quer que seja que se cole nelas. Uma verdadeira tristeza pois o continente africano seguramente deveria configurar-se entre os assuntos mais urgentes para serem abordados e consequentemente provocarem uma ampla produção de abaixo-assinados, retirada de diplomatas quando dos discursos na ONU e toda espécie de bloqueio de relações políticas e econômicas. Fica incomodamente sem resposta a questão dos motivos que levam a não se dar o devido foco ao que ocorre na Nigéria, principalmente para aqueles dentre nós que não identificam como alvo uma nação em particular que deva ser perseguida por conta de excessos cometidos contra civis.

Como o Boko Haram encontrou perspectivas de crescimento na Nigéria? Alexander Thurnston destacou o oportunismo do grupo terrorista que primeiramente se valeu da religião islâmica para ganhar espaço a partir do epicentro da cidade de Maiduguri, no noroeste da Nigéria. De acordo com o autor, a formação do Boko Haram guarda proximidade com uma sucessão de eventos tais como, governos fracos e corruptos, desemprego dos mais jovens e guerras civis. Para o autor,

Preocupar-se com a religião faz parte do jihadismo em geral. Como Shadi Hamid observou no caso do Estado Islâmico, “a religião é muito importante” para os jihadistas: “Ela inspira os apoiadores à ação; afeta a vontade de morrer (e, no caso do ISIS, a vontade de matar); influencia cálculos estratégicos e até mesmo decisões no campo de batalha.” Como um estudo de jihadistas no Paquistão descobriu, “os ideais religiosos (…) podem influenciar as escolhas individuais e coletivas” quando esses ideais têm “apelo moral ou prático para o crente” e “quando as crenças prescritas foram repetidamente vistas para ajudar a abordar as realidades cotidianas da vida” op. cit. p.9.

Um fator não menos importante é aquele que fez com que a aceitação das ideias radicais ocorresse de uma maneira mais fluida foi o fato de que a elite pós-colonial nigeriana estabelecida nas universidades já possuía antipatia em relação ao Ocidente, em especial em relação ao modo com que os valores morais eram ensinados nas escolas. Nesse sentido, num primeiro momento, quando o movimento ainda se pautava pela preocupação com o ensino do islamismo havia uma identificação e correspondência de ideias que foram compartilhadas. Lembrando aqui que em sua origem, o Boko Haram militava de forma pacífica e que seu conteúdo era somente religioso e pautado na preocupação com a preservação do islamismo. Foi com a morte de uma de suas lideranças principais, Muhammad Yusuf em 2009 que o grupo partiu para os atos de terrorismo, alinhando-se com outros segmentos jihadistas.

O aumento do número de seguidores desse grupo pode ser reputado à tradição religiosa presente na região, a expectativa de proteção por parte de quem pertence ao movimento, pressão pela filiação por parte de quem já estava na militância bem como a falta mais completa de ideais uma vez que quem engrossa as fileiras do Boko Haram são eminentemente jovens.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.