
A divulgação de protestos realizados em grande parte nas décadas de 60 e 70 fizeram muito mal para a continuidade de nossa história e isso pode ser percebido pela perda de qualquer noção de constrangimento alheio. Creio que essa situação deva ser tributada à preocupação das redes de TV dos Estados Unidos com a audiência e como meio de aumentar e manter os seus públicos. Muito já se disse sobre a Guerra do Vietnã ter sido perdida pelos Estados Unidos através da divulgação dos vídeos pelos meios jornalísticos. Ocorreu ali uma estetização das manifestações de protesto naquele instante, o que pode ser percebido por algumas situações. Houve quem colocasse flores no cano dos fuzis dos soldados que se encontravam nas manifestações. Teve quem se atirava no chão para que mais soldados fossem necessários para a retirada de um manifestante sequer. Temos também a evolução das palavras de ordem, os refrões pronunciados com o braço esquerdo levantado e o punho fechado.
Essa coreografia foi vista em filmes ou documentários que fizeram o possível para glamourizar as cenas, retirando-as da realidade que sempre é corriqueira e sem poesia alguma. Muitos presentes nessa geração tiveram a oportunidade de exercitarem-se nas manifestações que vieram a participar e assim por diante. Na última das grandes investidas populares pelas ruas do Brasil, em 2014, tivemos a oportunidade de ver uma sucessão de modos diferentes de demonstração de contrariedade do rumo da política que se fazia naquele momento. A frequência das selfies já indicava o desejo de lacrar nas redes sociais, demonstrando o seu potencial crítico e seu posicionamento político. Política como grife é algo que as classes médias amam de paixão visto que esse segmento bem se realiza na maneira como que quer ser visto, notado e percebido pelos outros: o comportamento de vila é mais forte do que qualquer crença.
Muitas pessoas afoitas prendem-se à frágil noção de que há uma evolução da cultura, como se fosse possível sair do pior e caminhar para o melhor. Essa fé autoriza coisas como a frase, uma pessoa adiante de seu tempo ou então o famigerado, “como pode tal coisa acontecer em pleno século XXI?” ou até mesmo a identificação de que uma ocorrência contemporânea seja questionada como se fizesse parte da Pré-história ou da Idade Média. O povo fala essas frases todas sem constrangimento algum, como se fosse comprovado que evoluímos nos costumes, comportamentos e valores morais.
Penso nessas atitudes quando percebo a persistência da prática dos movimentos estudantis do século passado em entidades formais como uma ONU. Gente que se levanta e sai do auditório quando um chefe de estado vai se pronunciar ou pessoas que escrevem alguma palavra de ordem em uma cartolina e a exibem durante um discurso. Tenho vergonha alheia de situações como essas. Penso que o povo que é representado por essas autoridades bem poderia questionar por que estão fazendo isso uma vez que os custos são altos para se enviar o diplomata para essas reuniões em Nova Iorque.
Mas além desse vexame, o que dizer da validade em si do protesto? Gente morrendo na guerra ou reféns que tanto sofrem e que ficam sabendo que isso foi feito por pessoas que deveriam estar preocupadas com elas. Como assim? No ar-condicionado e no carpete do histórico prédio da ONU? Se a edificação fosse em Abuja, com certeza poderia produzir algum ruído. Mas entre a Quinta e a Sexta avenida de Manhattan, esse arremedo de protesto não é um esculacho com o sofrimento real das pessoas envolvidas?
Os teleprotestos contribuíram para a decadência das lutas contra o que quer que fosse e isso porque se apegou ao visual estético de quem protestava ou à coreografia em si. O cinema ficcional ou de documentário bem soube explorar as milhares de cenas que foram captadas e a audiência sempre ávida por dramas se satisfez e ainda o faz, mesmo que acompanhando manifestações mais vexatórias. Ganha quem se propõe ao exame desinteressado desses eventos, seja pela atenção às consequências dos objetivos dos protestos ou do aspecto estético do que hoje tomamos contato.
Que tal tomar um desses protestos a partir das contradições? A luta nos Estados Unidos contra o alistamento obrigatório alcançou esse objetivo. Mas, se o movimento em si partia da premissa pacifista, ela nem de longe foi tocada. Enquanto o cidadão norte-americano se via desobrigado a se alistar, o exército abriu as suas fileiras para quem se interessasse no prosseguimento dessa carreira, uma vez que as guerras continuariam. O soldado mercenário fez com que se alavancasse a política de relações públicas ligada à indústria do patriotismo e ele se tornou um nicho. E se o que se via e tomava conhecimento nas batalhas promovia uma série de traumas, a tecnologia dos drones veio para aproximar os conflitos militares dos games digitais.
O resultado é que tomamos contato com situações terríveis sem que imaginemos sequer a realidade ali presente e que costuma vir sem trilha sonora e cenas que provoquem uma dramaticidade controlada. Um dos resultados dessa alienação – mesmo que justificada a partir de uma boa causa – é que atualmente pensamos os conflitos como situações que se ajustam às nossas mal elaboradas abstrações. É o que me passa como impressão o julgamento daqueles que veem genocídios e fascismos por todo lado e que postam caras e bocas nos seus perfis nas redes sociais.
Levantar-se e retirar-se de uma reunião como forma de protesto é um hit da passagem da infância para a fase adulta, o que em inglês se diz adulting.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

