Behavior

A tragédia como meio de identificação com o passado

Bastante sofisticada a interpretação do historiador britânico Dominic Sandbrook ao se voltar para a compreensão de uma atitude que não conta com a importância que faz por merecer. Alguém já tinha parado para pensar no destemor com que se emite hoje julgamentos sobre os feitos de personagens do passado? O que passa pela cabeça de uma pessoa esclarecida quando ela coloca sob suspeita os feitos do ex-primeiro ministro Winston Churchill? Ou quando se equipara o Império Britânico ao que de pior ocorreu no período do imperialismo colonizador? Essas aporias se encontram no podcast Triggernometry, The Best Conversation About History You’ve Ever Heard – Dominic Sandbrook.

Critério sempre foi e será um problema quanto ao que visamos em relação ao passado. E se adentramos a seara dos juízos morais, estaremos em solo para lá de movediço. O que levar em consideração e o que dar pouca importância, sendo apenas alguns dos problemas metodológicos em questão. Historiadores sagazes nos falam da faculdade da imaginação, o que nos abre para referências que podem passar pela literatura ou por textos que nos chegam a partir de uma tradição das ciências da religião. Quem leu alguma coisa de mitologia grega, do velho testamento, de Sto. Agostinho ou La Rochefoucauld bem sabe sobre as possibilidades abertas pela imaginação. E aquele que já se aproximou do ceticismo pirrônico muito conhece sobre o alto custo de se alcançar aquilo que venha a receber a insígnia da verdade.

Receptivo à essa atmosfera, Sandbrook lamenta o afastamento das referências trágicas, aquelas que nos aproximam de personagens ou situações para as quais as certezas são reduzidas ao pó. Pensemos em Medeia, Édipo ou Yago. As trajetórias desses três protagonistas nos emocionam a tal ponto que suspendemos o juízo moral. Nos envolvemos com o sucesso dessas narrativas e mantemos uma distância em relação aos julgamentos. A humanidade presente em cada um deles nos remete à alteridade: dados os mesmos contextos e situações, sairíamos melhor do que eles?

Uso aqui o recurso literário como uma referência para a reconciliação com alguns dos eventos do passado. Seria oportuno que não guardássemos ilusões sobre o que já se passou e que fôssemos à história como quem tem afinidade pelo conhecimento dos feitos humanos. Mas que não se invista nesse ofício sem o conhecimento preciso do conceito de anacronismo. Tornamo-nos seres produtores de metafísicas para todos os gostos e interesses uma vez que nos distanciamos e ignoramos aquelas mais tradicionais. Essas mediações podem ser vistas como equivalentes aos gadgets da tecnologia que nos cercam no cotidiano. A experiência no diálogo entre passado e presente nos habilita a perceber que muitos dos temas midiáticos do contemporâneo possuem lastros mais antigos do que se possa parecer.  Somos ainda muito dependentes do que foi elaborado no século XIX, momento em que as humanidades florescem no otimismo que fazia parte da atmosfera ocidental – contando aqui todas as contradições que seriam constituídas nesse contexto uma vez que Darwin, Marx e Freud não viveram por acaso nesse mesmo período.

Costumava-se evitar o anacronismo ao se tomar como um dado, que as guerras, o percurso das colonizações e a tragédia da escravidão, fossem de fato o que são: momentos terríveis da história e que nos lembravam mais exatamente daquilo que fomos capazes de fazer. Uma nota dissonante e angustiante nos acompanhava nessa percepção. Era um sinal de amadurecimento aquele em que nos afastávamos da excitação da descoberta de uma boa invenção para reconhecer a nossa infinita capacidade de fazer o mal.

É disso que Sandbrook fala e o que mais merece a nossa atenção. Vida fácil teríamos se apontássemos para sempre os culpados da história e nos sentíssemos confortáveis por não estarmos dentre eles. No entanto, o que a tragédia nos ensina é o contrário. Recordo aqui uma obra indicada por um amigo de longa data. Falo aqui de O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia, escrito por Susan Neiman (Rio de Janeiro: Difel, 2003). No itinerário de sua reflexão que teve o mal como um objeto de estudo da história e da filosofia, Neiman estabeleceu dois marcos cronológicos. O primeiro deles teve como evento central o terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755. O segundo crivo foi o do Holocausto judaico acontecido no decorrer da emergência do nazismo na Alemanha nas décadas de 30 e 40 do século XX. E se a pergunta que mobilizava o punhado de filósofos iluministas que encaminhavam a teodiceia em relação ao terremoto de Lisboa era “como Deus pode ter realizado o mal?”, os eventos da agência humana no extermínio de uma etnia conduziram ao seguinte questionamento: como fomos capazes de realizar tamanho mal? Ao nos desincumbirmos da responsabilidade das escolhas realizadas no passado, nos afastamos da identificação com a humanidade assim como a literatura nos ensinou com generosidade e franqueza.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.