
O cotidiano mais carnívoro, aquele da luta de todos contra todos, repercute em uma sociedade em que as sensibilidades são vistas como luxo, isto é, se puderem ser reconhecidas enquanto tal. A história nos conforma na aceitação de que somos mais propícios ao pão e água desconhecendo qualquer tonalidade que não nos estimule. Engana-se quem supõe que fomos feitos para brilhar e os poetas erram quando querem nos encantar com o produto de sua colheita na cultura mais sofisticada. A sofisticação é um milagre que na maioria das vezes não contará sequer com possibilidades de reconhecimento. Somos como os marceneiros que veem o mundo a partir de martelos, pregos e suportes.
O presente nos consome de tal maneira que o passado mais mobiliza aqueles que se servem dele para a chacota da revelação da idade. O que propriamente conta é a indicação de algum marcador da cultura pop e que permita a percepção de que se viveu naquele contexto que já se encontra longe. A hora da lembrança ocupa o lugar da nostalgia que costuma vir submerso nas precauções: o sentido dessa expressão já não conta mais com o aporte da dor – um aspecto bem sério então – que se encontra em sua origem.
Seres abobalhados que nos tornamos, vivemos no presente até o topo, recortamos e colamos um passado prêt-à-porter e fazemos do futuro um cercadinho individual. Uma vez eu ouvi de um pândego a seguinte expressão: eu sou o meu filho! Com essa resposta, ele fazia troça do fato de não querer ser pai, coisa aliás que com o tempo ele veio a se tornar. Visto por aí e o individualismo contemporâneo foi super dimensionado uma vez que passa a crença de que somente podemos contar conosco e com mais ninguém. Talvez tudo isso tenha ocorrido quando começamos a pensar nas coisas que os antigos costumavam dizer que eram para deixar quietas. Religião, família, costumes sociais ou Deus, é melhor que fiquem como sempre foram, isto é, se você não transformar todas essas elocubrações – hoje se diz, brisas – em ganha pão. Nesse contexto, cozido por muito tempo, respeitava-se a exclusividade de que alguns poucos, fosse por que razão fosse, tinham o privilégio de pensar sem que se embaraçassem e se perdessem. A modernidade fez disso tudo uma moda, mas sempre se soube que pensar demais era um risco a mais para a sobrevivência.
Isso me passa pela cabeça quando penso na dificuldade contemporânea que é a de fazer crer que o futuro é algo para se levar a sério. As variáveis dessa aspiração tornaram-se voláteis e já não temos o suporte da continuidade que parecia perpétua, mesmo que tacitamente acordada entre os mortos, os vivos e os que não nasceram, assim como definiu Edmund Burke – homem que fez dessa definição, o motivo de sua obra.
Será preciso que indiquemos alguns exemplos que atestem a abstração em que o futuro se tornou? Evitamos mencioná-lo para os mais jovens já que desejamos que se mantenham exatamente como são e que não amadureçam jamais. No mais, falar sobre o que você pretende fazer daqui a 10 ou 20 anos é um tipo de proposta que já é um climão puro. Abordar o futuro tem todos os disparadores mediados pela psicologia contemporânea: gatilho e desconforto a dar com pau. E ainda se revela o estraga prazeres que é aquele que fez essa proposta indecorosa. Suspeito das dificuldades contempladas pela publicidade quando às voltas com a divulgação dos produtos portadores do futuro como se uma commodity fosse. Como despertar a galera que leva a sério o “deixa a vida me levar, vida leva eu”?
Recentemente eu me mobilizei na leitura de um livro que se encontra aqui como inspiração dessa coluna. Eu falo de 2001: uma odisseia no espaço, escrita por Arthur C. Clarke em 1968. Muitos aqui devem se referenciar no filme dirigido por Stanley Kubrick e por isso, a presença do monolito negro dispensa maiores informações. Contudo, a narrativa literária dá mais destaque à comunidade pré-histórica e ao fazê-lo, ofereceu contornos mais precisos do protagonista, chamado de Aquele-que-Vigia-a-Lua.
O agrupamento do qual ele faz parte vive unicamente voltado para a sobrevivência o que se faz celeremente sem que demonstrações de outro tipo de sensibilidade venham a se manifestar. Doenças e morte são atropeladas, isto é, sequer são percebidas em metanarrativas ou conotações. Pelo contrário, é o enigmático monolito negro o responsável por insinuar sentimentos e aspirações que não pertencem aquele contexto. Tendo tomado contato com ele, o grupo sequer dá sinais de sua presença, a não ser pela iniciativa de lambê-lo para saber se poderia ser aproveitado ou não. Nas primeiras vezes em que o monolito se fez presente, ele se valeu da hipnose como meio de produção de respostas motoras estimuladas por sons. E nada seria recordado pelos participantes assim que os efeitos sonoros cessassem, com a exceção de uma manifestação que se deu através de imagens e que somente o líder do grupo contemplou:
Estava olhando para um tranquilo grupo familiar, que diferia em apenas um aspecto das cenas que ele conhecia. O macho, a fêmea e as duas crianças que, misteriosamente, tinham aparecido à sua frente estavam fartos e saciados, com pelos lisos e brilhantes – e essa era uma condição de vida que Aquele-que-Vigia-a-Lua nunca imaginara. Inconscientemente, passou as mãos pelas próprias costelas protuberantes; as costelas daquelas criaturas estavam ocultas por rolos de gordura. De tempos em tempos elas se mexiam preguiçosas, enquanto descansavam perto da entrada de uma caverna, aparentemente em paz com o mundo. Ocasionalmente o grande macho emitia um arroto monumental de contentamento. Não havia nenhuma outra atividade, e depois de cinco minutos a cena subitamente desapareceu. (Clarke, Arthur C. 2001: Uma Odisseia no Espaço (Portuguese Edition) (pp. 34-35). (Function). Kindle Edition).
Essa sequência nos configura com exuberância a tomada de consciência em relação ao futuro quando separado do cotidiano mais prosaico e chama a atenção o fato de que somente aquele que liderava o bando tenha sido capaz de vislumbrá-la. Arthur C. Clarke foi generoso ao nos dar mais informações sobre a evolução do personagem:
Ele não tinha lembrança consciente do que tinha visto, mas, naquela noite, ao se sentar inquieto na entrada de seu antro, os ouvidos sintonizados nos ruídos do mundo ao redor, Aquele-que-Vigia-a-Lua sentiu as primeiras pontadas leves de uma nova e poderosa emoção. Era uma vaga e difusa sensação de inveja – de insatisfação com sua vida. Ele não tinha ideia da causa, e menos ainda da cura, mas o descontentamento se instalara em sua alma, e ele tinha dado um pequeno passo na direção da humanidade. (Idem, ibidem).
Deixo de lado aqui as hipóteses de que seres extraterrestres tenham dado um empurrãozinho para que entrássemos em civilização, uma abordagem controversa em tempos de relativismo tomado junto com o leitinho da mamadeira. Mas penso na contingência que pode ter atuado em nós como meio de valorização ou não da consciência e da preocupação com o futuro propriamente dito.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

