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“Perdeu, playboy”: O que nos torna tão tolerantes com o crime

Em primeiro lugar, é evidente que o conjunto da legislação tem o objetivo de proteger os proprietários contra os despossuídos. As leis são necessárias exatamente porque existem os despossuídos e, mesmo que poucas leis o expressem diretamente – como, por exemplo, aquelas contra a vadiagem e aquelas que punem a falta de residência fixa, pelas quais o proletariado como tal é declarado fora da lei – a hostilidade em face do proletariado está na base do ordenamento jurídico. Friedrich Engels (1820-1895). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 301

Sendo o crime uma atitude que é indicadora de um rompimento de um contrato, ele demanda realização de uma reparação. Nada disso seria manifestado se tudo continuasse como antes, sem que nada dessa natureza viesse a acontecer. Há um antes e um depois do ato criminoso. Nas considerações de Engels, o crime pode ser revelador de uma contradição quanto ao que de fato acontece quando estamos tomados pela ideologia capitalista.

As aproximações entre o crime e a política podem ser contempladas a partir de muitos referenciais teóricos. Não do ponto de vista de quem se sente lesado por algo que lhe foi roubado ou por intermédio de um latrocínio que tenha sido perpetrado contra alguém que lhe seja próximo. Contudo, no conforto estimulado pela distância para com ocorrências dessa natureza, somos capazes dos mais altos voos e das construções de amplas conjecturas, aquelas que alguém pode se tornar hábil em melhor mimetizá-las para até provocarem catarse: bandidos idealizados aparecem aos montes nos filmes e séries.

Em se tratando da reflexão filosófica sobre o crime, escolho aqui as elaborações de J. J. Rousseau (1712-1778), na bem conhecida definição de que nascemos puros e podemos permanecer assim contanto que a sociedade como um todo, a partir daquilo que ela pode contribuir ou não, venha a guiar nessa trajetória. Cabe a ela então a responsabilidade das boas ou más escolhas que faremos. Na literatura, deve nos vir à mente a jornada da criatura em Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818), para sempre associada ao mal por parte de seu criador, mesmo que ela se defenda demarcando a sua inconsciência em relação a esse estado, uma vez que somente retribuiu os ataques de que foi alvo.

E se o delito moral – o rompimento de um acordo social – é a contradição que deu lugar às expectativas rousseaunianas de melhoria dos aparatos da sociedade, para a comunidade posterior de pensadores herdeiros dessa crença, essa visada ganhou solidez. Esse sendo o caso da tradição marxista que se deteve na dialética como meio de identificação dos equívocos provocados pelo capitalismo. Deixemos claro aqui que não estamos mobilizados em atribuir à esquerda a responsabilidade pela criminalidade, mas sim de buscar identificar o constrangimento histórico que se apresenta no encetamento de atitudes ilícitas especialmente quando ocorridas sob a égide de economias capitalistas.

Do ponto de vista das esquerdas, o crime revela uma contradição, uma vez que o criminoso pode ser visto como alguém que usurpa o que na verdade lhe pertence. Tirar dos ricos e dar aos pobres não é somente uma afinidade construída na adolescência, mas sim um dos acessos ao conceito de reparação. Falta ao criminoso a consciência de que seus feitos possam ser organizados o suficiente para que sejam investidos da crença de que sejam atos políticos. Essas impressões ganham maior força se recuperarmos o contexto em que foram primeiramente gestadas, na segunda metade do século XIX. Naquele instante, sem a existência do crime organizado – uma realidade que o cinema norte-americano iria eternizar na era da Proibition – os casos esparsos de criminalidade seguiriam esse percurso se fossem narrados pelos pensadores de esquerda, como se intui a partir da epígrafe acima.

Sem esquecer que nos momentos revolucionários, o caos provocado por uma crescente criminalidade poderia vir a contribuir para a ruína daquele governo que se pretendia destituir. Claro está que o crime nos países comunistas seria percebido e tratado como desvio burguês uma vez que as contradições estariam banidas por decreto revolucionário. Mas é claro que essa não seria a interpretação quando o mesmo se desse nas monarquias ou democracias liberais.

Esse tipo de tratamento dúbio deve ter contribuído para que no futuro se passasse pano nos ilícitos cometidos pelos criminosos. Mas houve mais ingredientes juntados ao caldo. O fascínio idealista aproximado aos movimentos politicamente organizados que vieram a se voltar contra a ordem liberal cumpriram um papel de destaque nesse cenário. O crime poderia alcançar à consciência de seu papel como meio de provimento daquilo que injustamente é impedido às populações mais pobres. Tratam-se de aproximações cabíveis e que nos possibilitam retomar as posições contemporâneas sobre os feitos do crime organizado nos países cujos mandatários são de esquerda.

Em colunas passadas, eu já tive a oportunidade de evidenciar aproximações entre grupos ligados ao crime para com outros que se caracterizam pelas ações políticas, mesmo que igualmente criminosas. Fazer reféns, praticar violência sexual ou homicídios podem ser vistos como práticas políticas, uma vez que desestabilizadores de uma ordem social que não se aceita como legítima? Servir-se do crime organizado como modo de se conseguir armas e munições para uma causa política não seria uma forma explícita de conivência com o crime?

O silêncio em relação a essas observações, quando percebido no Brasil, transparece que apenas exportamos a naturalidade do nosso convívio com o crime. Não se trata de se felicitar quando um número expressivo de vítimas é contabilizado por conta de um ataque militar, mas de perceber que estamos tão acostumados com o que venha a ser ilícito que sequer contradição ele nos provoca. E para as nossas elites, Miami segue sendo o lugar mais seguro do Brasil.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.