Introdução
O texto a seguir é o segundo de uma série de três textos destinados a caracterizar as três dimensões do consumo de forma distinta – a dimensão cultural (I), a dimensão política (II) e a dimensão econômica (III) –, com base nas características da sociedade de consumo capitalista, e tendo como contexto histórico principal o período pós-guerra e a crise provocada pela pandemia de COVID-19.
Após cada uma das três dimensões, são realizadas aproximações e observações tendo em vista o cenário atual, marcado pela pandemia e seus reflexos na economia e no comportamento social.
Leia também [Parte 1] e [Parte 3]
Dimensão Política do Consumo
A dimensão política do consumo se distingue frente à complexidade da sociedade de consumo e à extensão geográfica dos mercados, marcados pela separação dos locais onde se processa a produção e os locais onde efetivamente ocorre o consumo. Uma segunda característica: o vendedor da mercadoria não conhece nem o fabricante nem o consumidor, e, por vezes, o vendedor não sabe direito o que está vendendo. Por fim, toda comunicação que supostamente ligaria vendedor, fabricante e consumidor é mediada por uma publicidade cada vez mais veloz e efêmera, pois precisa acompanhar a emergência das “novidades”, do “novo”, do “moderno” e da versão ou modelo mais atual. O sistema fast fashion de consumo não se aplica somente ao mercado da moda vestuário.
Como subproduto dessas relações comerciais e de consumo, cada vez mais complexas, surge um arcabouço jurídico para regular as relações entre mercado e empresas em âmbito nacional e internacional. Em decorrência disso, o consumidor final e individual demonstra necessitar também de uma dimensão política do consumo, a defesa do consumidor. Com ela, surgem instituições, leis e uma consciência reivindicatória ao ponto das próprias empresas criarem canais de comunicação específicos para absorverem parte das reclamações.
Sob essas circunstâncias, cresce a consciência da cidadania, que expande ainda mais os limites da dimensão política do consumo. O aumento da consciência cidadã do consumidor o leva a fazer manifestações e protestos contra marcas que desobedecem à legislação ambiental, por exemplo. Surgem os boicotes a essas marcas, como forma de pressão econômica ao forçar a negociação entre consumidores e empresários. Ao longo do pós segunda guerra e, principalmente, nos anos 1970, o consumidor foi se definindo como uma categoria social no espaço público.
O movimento político relativo ao consumo é dividido em dois tipos, conforme Giacomini Filho descreve em Consumidor versus Propaganda. O primeiro movimento é o de proteção ou de defesa do consumidor, caracterizado pela proteção de bens e serviços, de ação localizada, sendo os danos encarados como prejuízos monetários, de efeitos limitados e ação individual, repercutindo pouco nos meios de comunicação de massa.
Já o segundo movimento, o consumerismo, de acordo com Giacomini Filho, é um anglicismo derivado de “consumerism”, termo utilizado para designar qualquer movimento de consumidores ou entidades afins em qualquer região ou época. Caracteriza-se por ter como bem a sociedade e a qualidade de vida, no qual os danos são encarados como prejuízo de valor social, de ação coletiva, tendo considerável cobertura midiática, podendo receber influência de outros países e tendo preocupação imediata com minorias, crianças e o meio ambiente. Os boicotes a marcas e empresas, em particular, dizem menos respeito aos direitos dos consumidores em si. Surgem os movimentos consumeristas com as bandeiras que defendem os direitos humanos, contra a exploração do trabalho infantil e a poluição ambiental.
Os movimentos consumeristas, por meio de seus instrumentos políticos e sociais, pressionam o legislador a criar leis que inibam o consumo do cigarro e de bebidas alcoólicas, mediante proibição da publicidade desses produtos – o que também se aplica à publicidade voltada ao público infantil. Exigem maior fiscalização por parte dos órgãos de Estado, limitando-se assim o sistema da livre iniciativa. O bem coletivo em detrimento da liberdade individual.
Um caso emblemático, e de grande repercussão negativa nas mídias convencionais e sociais, foi o caso do restaurante Madero. No dia 23 de março, quando se registrou 1960 infectados e 34 mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o proprietário da rede de restaurantes Madero, Júnior Dursky, afirmou que o “Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”, colocando-se a favor da economia e menosprezando a morte. É bom lembrar que ele não foi o único empresário a fazer esse tipo de declaração. Passados quase dois meses dessa primeira declaração, no dia 16 de maio, o proprietário do mesmo restaurante volta ao noticiário ao afirmar estar surpreso com a queda das vendas durante a pandemia, especificamente no restaurante localizado na cidade de Curitiba-PR, localidade que já havia flexibilizado os protocolos de distanciamento social. Ele afirma que as vendas caíram para cerca de 10% em relação ao que eram antes da pandemia.
Nesse caso, as manifestações de boicote nas mídias sociais foram expressivas e podem explicar parcialmente a queda substancial das vendas, pois a imagem do Madero ficou arranhada em função das declarações do mês de março. Mas outro fenômeno pode ter colaborado com a queda das vendas: a economia está deprimida, há desemprego, redução de salários e redução de gastos das famílias para a formação de poupança por motivo cautelar. Portanto, de forma genérica, a mudança do hábito de comer fora da residência pode ser provocada pelo medo da contaminação viral e pela falta de dinheiro. Já para o caso específico do restaurante Madero, explica-se a redução das vendas também pelo boicote deliberado, somado ao desgaste da imagem da marca, o que é característico da dimensão política do consumo.
Sob o aspecto político-partidário e suas ideologias, algumas empresas e suas Marcas, influenciadas por seus proprietários, acabam apoiando partidos e governos. Mas partidarizar uma marca é um jogo perigoso, pois nem todo governo ou partido político goza de unanimidade ou simpatia. Nesses casos, o proprietário não consegue separar sua pessoa física da pessoa jurídica e isso pode criar desgastes de imagem e boicotes à marca. Ainda mais em um momento de crise sanitária e econômica provocada pela pandemia.
O movimento coletivo e cidadão denominado Sleeping Giants tem como objetivo combater sites que publicam fake news. A iniciativa surgiu nos Estados Unidos, após as eleições presidenciais de 2016, e seus criadores explicam que, ao investigarem quem eram os patrocinadores de notícias de ódio (racista, homofóbico, xenofóbico, sexista, antissemita) durante as eleições presidenciais de 2016, descobriram haver múltiplos anunciantes, mas que nem todos tinham conhecimento de que pagavam por anúncios que seriam veiculados em sites que publicavam conteúdo de ódio e fake news. O motivo desse desconhecimento é o fato de a publicidade ser “programática”[2], pois são os algoritmos que escolhem e segmentam os indivíduos que receberão as mensagens – ao invés de ser atribuída a sites específicos e predeterminados. Sabedores dessa prática “algorítmica”, os responsáveis pelo Sleeping Giants começaram a avisar as empresas que tinham suas marcas vinculadas aos sites de ódio e fake news, levando ao enfraquecimento financeiro desses sites.
No Brasil, o movimento chegou em meados do mês de maio de 2020, e em sua conta do Twiter se define como: “Uma luta coletiva de cidadãos contra o financiamento do discurso de ódio e das Fake News”.
Em sua primeira atuação, o Sleeping Giants Brasil denunciou que anúncios publicitários do Banco do Brasil estavam sendo veiculados em sites propagadores de ódio e fake news, ou seja, que esses sites recebiam valores financeiros pela veiculação. Isso não quer dizer que tenha sido uma ação deliberada do Banco do Brasil, cabendo investigação por tratar-se de uma empresa estatal. A publicidade foi suspensa por determinação do Tribunal de Contas da União, depois da interferência, junto à direção do banco, do vereador licenciado do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, filho do presidente da república. Diante dos fatos, o movimento Sleeping Giants Brasil afirma, em matéria da revista Veja de 29 de maio, que o governo federal dissemina ódio com dinheiro público.
Ainda durante o calor da repercussão do caso do Banco do Brasil, que envolve o governo federal, a Polícia Federal deflagrou operação de busca e apreensão contra diversos investigados no inquérito sobre fake news (4,781), conduzido pelo Supremo Tribunal Federal. Chama a atenção, no entanto, que dois investigados – Luciano Hang, dono da Havan, e Edgard Corona ,da Smart Fit – são abertamente apoiadores do presidente da república e financiaram sua campanha eleitoral de 2018, além de tentarem interferir nas regras de isolamento social durante a pandemia, com seus negócios duramente atingidos.
A repercussão desses fatos e suas interligações geraram grande onda de boicotes a ambas as marcas. A Smart Fit sofreu protestos por parte de seus clientes e grupos de ativistas LGBTs, logo após a repercussão da operação da Polícia federal. No caso da empresa Havan, os protestos e boicotes também são muito intensos nas lojas e redes sociais.
Por fim, tanto as ações do movimento Sleeping Giants Brasil como as ações de boicotes organizados por coletivos e associações são exemplos do consumerismo e de seu poder em relação à dimensão política do consumo.
[1] A “publicidade programática” é uma ferramenta do Google. Um método de anunciar no qual não é a empresa que decide em quais sites seu anúncio será veiculado. É a ferramenta que direciona os anúncios a partir de filtros predefinidos pelas empresas.