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Democracia no divã

Pesquisas mais ou menos recentes indicam o crescimento da insatisfação em relação à democracia em muitos países do mundo e o clima geral é de DR, mesmo, discutir a relação. Não podemos dizer que esse fato é inteiramente novo. A democracia moderna deu o ar de sua presença, como se sabe, ao final do século XVIII, nos Estados Unidos recém-independentes e na França da Revolução Francesa. Tratava-se de dois modelos políticos distintos, mas ambos partiram de uma apropriação desta forma de governo constituída primeiramente na cidade-estado de Atenas, num curto espaço de tempo do século V a.C.

Sua aceitação em outras nações foi consumada num ritmo bem vagaroso. Mas é certo que o tema do escrutínio eleitoral, concebido de muitas maneiras diferentes, foi sendo discutido e compartilhado por povos espalhados pelo globo, na América Latina e na Europa. O século XX, em especial, acompanhou o aparecimento de um número maior de países que acolheriam os princípios da democracia. A grande exceção diz respeito aos países que se tornaram socialistas, que, mesmo considerando-se repúblicas populares, ao menos deixaram de se pautar pela referência das democracias ditas liberais. Mas, mesmo assim, pode-se dizer que tais nações se orientavam mais pelas raízes rousseanianas – democráticas, a partir de seu ponto de vista – encontradas no conhecido período do Terror, fase da Revolução Francesa. Também no século XX, o nazismo e o fascismo se voltaram contra a democracia.

Após o final da Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir das décadas de 70 e 80, a democracia se tornou um tipo de referência, inclusive para o julgamento e a comparação entre as nações. Com a queda do muro de Berlin, os países que até então orbitavam no entorno da União Soviética também se posicionaram a favor da democracia, o mesmo ocorrendo na América Latina – com exceção de Cuba, que persistiu numa aproximação com o socialismo mais clássico e sem eleições para a escolha do presidente da República, por exemplo.

Mas tudo isto parece ter se alterado grandemente nos anos mais recentes. O artigo publicado no Pew Research Center, Many across the globe are dissatisfied with how democracy is working, de Richard Wike, Laura Silver e Alexandra Castilo, de 23/04/2019, aponta exatamente nessa direção. A pesquisa foi realizada em 27 países, incluindo o Brasil, entre 14/05 e 12/08 de 2018, e 30.133 pessoas participaram.

Vamos ver alguns dos resultados, numa transcrição quase literal do artigo mencionado. É importante que ele próprio seja conhecido, mesmo porque as porcentagens são reveladoras de tendências e nem sempre nos deparamos com uma maioria expressiva que penda a um lado ou outro. Por exemplo, 51% das pessoas – somando as respostas obtidas nas 27 nações – não estão satisfeitas com a democracia, enquanto 45% estão. Além disso, para que se perceba os diferentes matizes, Suécia e Holanda contam com uma maioria que está satisfeita com a democracia. Ao passo que Itália, Espanha e Grécia contam com um número mais expressivo de pessoas que possuem uma reação adversa à democracia.

O ódio às elites políticas, a insatisfação com a economia, bem como o desejo de que as mudanças sociais sejam mais rápidas – havendo ansiedade em relação a isto – estão remetidas ao desgaste da democracia. Outros dados também apontam que, em meio a esta situação de desalento, novas lideranças antiestablishment, de direita ou esquerda, vão desafiando as instituições. Além disso, a maioria também entende que as eleições não alteram tanto o cenário e que os políticos corruptos não são alcançados pela justiça.

Quando o país é governado por um político de um partido que não é o de sua preferência, a pessoa tende a ficar ainda mais insatisfeita com a democracia. Observou-se, ainda, que democratas insatisfeitos – no caso norte-americano – são mais propensos às alternativas não democráticas. E mais: “as pessoas mais insatisfeitas com a democracia, mais aceitariam apoiar um governo que fosse regulado por experts e que tivessem um líder forte, um militar”.

Os dados relativos ao Brasil nos colocam em terceiro lugar no que diz respeito à insatisfação com a democracia, havendo proximidade de opinião entre os que têm menos ou mais educação formal. A porcentagem de pessoas que entende que a democracia não está funcionando no Brasil pulou de 67%, em 2017, para 83%, em 2018.

Talvez o mais interessante, em linhas gerais e de modo a comparar com o passado, seja o fato de que o desgosto não está mais somente direcionado a uma pessoa, um político ou política eleita, por exemplo, mas ao sistema como um todo. A aspiração por um governo forte com perfil de ditadura, de esquerda ou direita, já se perfaz num dado mais equivocado – ao menos se pensarmos no tipo de recuperação idealizado que se faz de um passado, inclusive recente para algumas nações em especial. Perceba-se, nesse sentido, que as informações sobre política ou história que circulam nos tempos presentes aparecem com sinais trocados. O que se entende por democracia tem coberto um arco que passa pela associação aos governos da Venezuela, de Cuba, da China, Coréia do Norte e Estados Unidos ou França. Assim, parece difícil compreender o que se quer dizer quando se pronuncia a palavra democracia na contemporaneidade.

Finalmente, no campo do comportamento, é interessante a ansiedade a cerca da resolução das mudanças sociais. O que nos leva a acreditar que haja um imediatismo, impaciência e um sentimento de urgência que recai mais exatamente sobre aqueles que geraram as expectativas que dificilmente serão cumpridas: os políticos profissionais. A diminuição do tamanho do mundo por intermédio das redes sociais, do contato com o streaming de séries e filmes, além do fato que vivemos em bolhas amplificadas pelas câmaras de eco, seguramente influencia esta avaliação negativa que se faz de um sistema como um todo – aquele que prometeu, mas não cumpriu. A fragilidade, nos parece, está em supor-se que as soluções, em especial as econômicas, sejam tão fáceis, rápidas e eficientes.

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.