Resumo: Uma relação entre o Tabernáculo e a Virgem tecelã na obra do Pe. Marko Ivan Rupnik, passando pela história da Virgem tecelã, a contextualização do Êxodo do povo hebreu do Egito à Terra Prometida, a construção do Tabernáculo e o seu significado.
Palavras-chave: Virgem tecelã; Tabernáculo; Rupnik; arte sacra contemporânea
Introdução
De todas as representações de Maria, a que mais me toca é a da Virgem tecelã. Isso com certeza acontece pelo fato de eu ser filho de uma costureira e sobrinho de uma modista. Cresci em meio a máquinas de costura, agulhas e novelos de linhas e lãs. Assim fica fácil entender como meu coração sentiu um cheiro maternal, e meu corpo foi aquecido, qual uma criança já sonolenta na cama a ser coberto pela sua mãe, quando conheci essa representação de Maria tecendo ao receber a visita do anjo Gabriel. Passam em minha mente muitas possibilidades. Uma vez que já estava prometida para José, ela estaria fazendo um enxoval para o seu casamento? Ou estaria se preparando para o frio como a mulher virtuosa de Provérbios 31, que “não teme a neve sobre a sua casa, pois todos andam vestidos de lã escarlate” já que ela “ busca lã e linho e de bom grado trabalha com as mãos”? A despeito desses devaneios, ao representar Maria numa função artesã, o artista a coloca em identificação com muitos de nós, trabalhadores simples, que de um fio de esperança trazem a provisão ao lar.
1) A história
Esse nome da Virgem como tecelã é muito conhecido nas igrejas orientais. Efrém, o sírio, já no século IV escrevia poemas sobre esse título. Segundo o site oficial do Vaticano, “A imagem de Maria como ‘tecelã’ está presente na iconografia cristã desde o mosaico do arco triunfal de Santa Maria Maior e ao longo do primeiro milênio.” [1] Dentre as quatros basílicas papais de Roma, essa foi a que conservou o estilo paleocristão. A cena da anunciação está no lado superior esquerdo de quem olha para o arco do triunfo, e traz a visita de Gabriel acompanhado de vários anjos e uma pomba, simbolizando o Espírito Santo, descendo em direção a Maria, que está sentada tecendo com um fio de lã vermelho.
Detalhe da Anunciação do Arco Triunfal de Santa Maria Maggiore[2]
A pesquisadora em arte sacra e doutora em Ciências da Religião Wilma De Tommaso relaciona a Virgem tecelã com a Virgem da saúde, quando apresentada em uma de suas três usuais formas de representação: a Anunciação. Nela, a Virgem da saúde se encontra na posição orante, ou seja, com as mãos levantadas. Essa imagem é muito utilizada pela Igreja Católica em capelas de hospitais.
Na Anunciação, Maria era apresentada com as mãos levantadas, imagem muito antiga que remonta das catacumbas, conhecida como “a orante”, parece que a Virgem se rende a Deus renunciando ser a protagonista, sua postura sugere que ela está dizendo: “É contigo, Senhor, és o Primeiro.” [3](TOMMASO, 2021, p. 20)
Ícone Orante de Yaroslavi. Seculo XIII. Galeria Tretiakov, Moscou. Domínio público.[4]
Nossa Senhora da Saúde. Mosaico lateral direito da capela do Hospital Beata Maria Ana em Madri[5]
2) O fio: símbolo da Encarnação
Detalhe da Anunciação na Capella del monastero dei santi Francesco e Chiara a cademario 2018 – Centro Aletti – LIPA
A relação de Maria com a atividade tecelã se dá por meio da poética; e é em momentos como esse que a beleza da arte sacra me fascina. Não se trata simplesmente de compor uma cena que justifique a chegada inesperada do anjo, enquanto Maria se ocupava de suas tarefas domésticas, como que compondo o espaço em branco de um quadro renascentista, ansioso pelo preenchimento de seus vazios da tela, mas trata-se de uma simbologia que nos leva à revelação da santa Encarnação. Ao colocar um fio de lã vermelho nas mãos da Virgem, o artista mostra primeiramente o chamado de Maria. Coube a ela, e não a outra mulher, tecer em seu ventre o Verbo Encarnado, como predito pelo profeta messiânico ainda no Antigo Testamento “eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel.” (Is 7,14). Ao receber e aceitar o chamado para ser a primeira habitação terrena de Jesus, Maria torna-se Theotokos, Mãe de Deus, e assim começa a revelação do maior milagre que a humanidade já viu. Sem a intervenção do homem, o corpo da Virgem começou a fiar, dentro de si, a revelação do Evangelho. Como diz o poeta português e especialista em estudos bíblicos José Tolentino Mendonça, ao citar Louis-Marie Chauvet em seu livro A mística do Instante: “o mais espiritual não acontece de outra forma que não na mediação do mais corpóreo” (2016). É no ventre de Maria que acontece o que o evangelista João disse nas primeiras palavras do seu livro: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1,14). Foi ali dentro do ventre novo que a boas-novas do Evangelho surgiram, pois “não se coloca vinho novo em odres velhos, mas se coloca vinho novo em odres novos” (Lc 5,37). Mais uma vez do nada, como na criação do mundo, o Espírito Criador brilhou a luz, e, enquanto esse Espírito criava, o Pai do alto olhava os membros de Jesus sendo costurados e tecidos no ventre da Virgem, como bem cantou o salmista “Quando os meus ossos estavam sendo formados, e eu em segredo me desenvolvia, tecido nas profundezas da terra, nada disso te era oculto. Os teus olhos me viram em embrião” (Sl 139,15-16). Eis a Trindade em plena ação. Eis a beleza do Evangelho acontecendo no ventre de Maria.
Lembremo-nos, por um instante, de Raabe; a prostituta de Jericó que escondeu os espias hebreus que foram investigar a terra antes da invasão. Ela acolheu o que se tornou a sua salvação e de toda a sua família e, na fuga, os espias deram-lhe um sinal para que o exército hebreu não invadisse a sua casa no momento da guerra: um fio escarlate que descia pela janela de sua casa que estava sobre o muro da entrada da cidade de Jericó.
Desobrigados seremos deste teu juramento que nos fizeste jurar, se, vindo nós à terra, não atares esse cordão de fio de escarlata à janela por onde nos fizeste descer; e se não recolheres em casa contigo teu pai, e tua mãe, e teus irmãos, e toda a família de teu pai. Qualquer que sair para fora da porta da casa, o seu sangue lhe cairá sobre a cabeça, e nós seremos inocentes; mas o sangue de qualquer que estiver contigo em casa caia sobre a nossa cabeça se alguém nele puser a mão.(…) E ela disse: Segundo as vossas palavras, assim seja. Então os despediu; e eles se foram; e ela atou o cordão de escarlata à janela. (…) Então, disse Josué aos dois homens que espiaram a terra: Entrai na casa da mulher prostituta e tirai-a de lá com tudo quanto tiver, como lhe jurastes. Então, entraram os jovens, os espias, e tiraram Raabe, e seu pai, e sua mãe, e seus irmãos, e tudo quanto tinha; tiraram também toda a sua parentela e os acamparam fora do arraial de Israel. Porém a cidade e tudo quanto havia nela, queimaram-no (…) Mas Josué conservou com vida a prostituta Raabe, e a casa de seu pai e tudo quanto tinha e habitou no meio de Israel até o dia de hoje (Js 2,17-21; 6,22-25)
Raabe colocou toda a sua família para dentro de sua casa mediante uma promessa de salvação, cujo sinal maior era o cordão escarlate. Esse fio prefigura o sangue de Jesus, que jorrava sobre o madeiro, escorrendo sobre a cruz, tal como escorria o fio de escarlate sobre o muro de Jericó. Esse fio de esperança, agora, na Anunciação, está nas mãos da Virgem tecelã, que tece em seu ventre a Salvação de todas as famílias que acreditam e desejam estar debaixo desse fio. Recordemos que foi da linhagem de Raabe que Jesus nasceu, conforme o evangelista Mateus nos descreve ao registrar a genealogia de Jesus (Mt 1,5). Com base nessa relação bíblica, em nada me assustará ver um dia um mosaico de arte sacra em que Raabe entregue o fio de escarlate nas mãos da Virgem tecelã; pois os olhos de quem contempla a arte sacra não vê apenas o aparente, mas o mistério revelado por entre os elementos apresentados. E isso é a mistagogia do símbolo que a arte sacra tão belamente nos traz.
Detalhe da Anunciação na Capella del monastero dei santi Francesco e Chiara a cademario 2018 – Centro Aletti – LIPA
Quando falamos de símbolo é necessário ter a coragem de bloquear algumas interferências, pois dizendo símbolo, rapidamente vem à mente algo que estudamos na escola, a partir de pensadores como Heidegger, Kant, Camus, Ricoeur, entre outros. Eu vos pedirei um ato de ascese e o apagamento dessas interferências, pois elas não têm nada a ver com a visão cristã do símbolo. Por isso é necessário redescobri-lo (RUPINIK, 2019, p. 53)
O símbolo é esse escândalo da cruz que une uma prostituta estrangeira do passado à Virgem que dará à luz no futuro. Marko Ivan Rupnik, padre jesuíta esloveno e artista sacro contemporâneo, chama o símbolo de “o lugar do encontro”:
A primeira vez que encontrei Deus, quando abri os olhos depois do Batismo, encontrei-me em uma comunhão que eu não sabia que existia, eu pensava que a comunhão era fruto de um esforço, agora encontrei uma vida que é constituída como comunhão. Eu me encontro costurado com os irmãos e irmãs. Como escreve o autor de Gênesis (2,21), a vida de um é ligada à vida do outro, somos um tecido. Quando eu abri os olhos nesta existência, entendi que existo segundo Deus, respiro a mesma vida que o Pai e o Filho, o Senhor da Koinonia (comunhão), o Espírito Santo (RUPNIK, 2019, p. 57)
3) O Logos encarnado
Na cena da anunciação, Rupnik costuma colocar o rolo escrito descendo do céu até chegar às mãos de Maria, enquanto, ao lado, o anjo Gabriel a saúda: “Alegra-te jovem, achaste graça diante de Deus, bendita és tu entre as mulheres!” (Lc 1,28). E quem é esse rolo? Cristo. Ele é a palavra, o Logos que encarna dentro do ventre de Maria. Sobre Ele, revelado pelo mesmo Espírito que o gerou dentro de Maria, Pedro declara: “Tu És o Cristo, o Filho do Deus vivo!” (Mt 16,16)
Ao ser o ventre gerador de Jesus, Maria, a tecelã que recebe o rolo da palavra, torna-se a primeira iconógrafa cristã, pois escreve em seu ventre, com lã de escarlate, o próprio Cristo vivo; a promessa escrita nos profetas da Antiga Aliança agora se incorpora na luz da Nova Aliança, da qual, posteriormente, Ele mesmo, Jesus, disse na santa ceia: “comei, bebei, esse é o meu corpo e o meu sangue da Nova Aliança que é partido e vertido por vós para a remissão dos pecados; fazei isso todas as vezes, em memória de mim. (Mt 26,26-28)
Detalhes da Anunciação na Capella privata a tarazona 2018 – Centro Aletti – LIPA
4) O Tabernáculo
O Centro Aletti, lugar de pesquisa e produção artística e de comunhão cristã, dirigido por Rupnik em Roma – Itália, foi escolhido pelo Santuário de Aparecida em São Paulo – Brasil para o revestimento em mosaico das suas fachadas. A fachada Norte tem como tema central o Êxodo do povo hebreu, do Egito à Terra Prometida. Em uma das cenas expostas contemplamos a construção do Tabernáculo. Todavia, uma personagem curiosamente aparece em sua construção: é Maria que, junto com os construtores, em sua versão tecelã, monta o Tabernáculo. Mas o que a Virgem tecelã estaria fazendo na construção de uma tenda? Para responder a essa pergunta precisamos entender o sentido do Tabernáculo:
4.1) O Éden: lugar da relação
Desde o Éden, Deus deseja se relacionar com o homem, por isso se encontrava com Adão “na viração do dia” para conversar com ele (Gn 3,8). Quando Deus decidiu formar o homem, o fez a sua imagem e semelhança. E que semelhança é essa? Uma semelhança física? Por certo que não, já que o homem foi tomado do pó da terra (Gn 2,7). Então qual é essa semelhança? Deus disse “Façamos o homem à nossa imagem e conforme a nossa semelhança”(Gn 1,26). Ele diz “Façamos”, e essa expressão mesma já contém a resposta: um Deus de comunhão que decide em sua relação formar um ser que também comungasse com ele. Eis a semelhança.
Deus plasmou o homem à sua imagem e semelhança, portanto, criou-o para que pudesse viver a sua humanidade de maneira relacional, em comunhão, à maneira do amor (RUPNIK, 2019A, p. 65)
O Pai, o Filho e o Espírito Santo anseiam por revelar seu amor a outro ser fora de si. Ora, quem ama não pode amar sozinho, pois amar é uma relação com o outro. O Pai ama o Filho e o Filho ama aquele que o enviou, e o Espírito ama e cuida da Igreja até que o noivo volte. Nisso está nítido que está na essência de Deus amar o homem. E em que dimensão se dá esse amor? Na dimensão do encontro.
Os Padres [gregos] diziam: por debaixo da existência há a pessoa, uma identidade pessoal, relacional de Deus. Portanto o modo de existir de Deus é o do Pai, por que, quando digo “Pai”, digo a origem pessoal e o próprio movimento de geração de um outro, digo a relação originária que já incluiu o outro, o Filho. E quando digo: “Filho”, digo uma existência relacional, de comunhão, porque nessa palavra está incluído o outro, o Pai. Para uma experiência simplesmente natural, o difícil era pensar que a própria relação pudesse assumir uma existência pessoal, ou seja, o Espírito Santo, a que os Padres chamavam o amor do amor de Deus, o vinculum ou laço do amor que une o Pai ao Filho (RUPNIK, 2019A, p 62)
Quando o homem come do fruto que Deus disse para não comer, quebra-se a relação do encontro e inicia-se a separação do homem de Deus, a começar do Éden; foram expulsos do jardim, mas também da vida em comunhão com Deus. A isso damos o nome de pecado (Gn 3,23-24).
Ocorre que esse Deus, que é amor e que deseja se manifestar em amor, não se conteve em ter sua criação longe de si. Fico pensando o quão dolorido foi para esse Deus comunional não encontrar Adão no lugar onde conversavam. Até antes de compreender Deus como alguém que anseia se relacionar com o homem, sempre me soou ameaçadora a frase de Deus ao perguntar para Adão: “Onde estás?”, pois Ele já sabia em sua onisciência o que tinha ocorrido; mas agora que entendo um pouco mais dessa relação de amor, percebo que essa chamada de Deus por Adão não tem a ver com julgamento, mas com um chamado de um Deus com dor ao chamar pelo seu amado e não o encontrar, seu grito é de dor, à procura de quem ama sem obter resposta. Você consegue ouvir esse [Onde estás?] dessa forma? Foi assim que o esposo de Cantares de Salomão se sentiu ao chamar por sua amada e clamar para que ela abrisse a porta, mas ela não abriu:
Abre-me minha irmã/ querida minha,/ pomba minha/ imaculada minha/ porque a minha cabeça está cheia de orvalho/ os meus cabelos das gotas da noite/ (Cantares 5.2)
Não obstante e decidido a manter essa relação que foi cortada, no momento de sentenciar a serpente, ainda no Éden, Deus decide professar o plano de Redenção para o homem. Ele disse: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gn 3,15). Ainda o homem caía e Deus já o amava, pois “Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores.”(Rm 5,8). Embora fisicamente o ato consumado tenha se dado muito tempo depois, ali no Éden Deus já “nos amou de uma tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3,16). A isso damos o nome de Salvação.
E como se deu essa Salvação? Por meio do sacrifício de Cristo-Homem, “por que assim como o pecado entrou no mundo por um homem e pelo pecado a morte [separação de Deus] (…) muito mais aqueles que recebem de Deus a imensa provisão da graça e a dádiva da justiça reinarão em vida [relação com Deus] por meio de um único homem, Jesus Cristo” (Rm 5,12-21) Foi necessário a manifestação corpórea de Cristo para que esse sacrifício fosse feito e, por fim, a relação com o homem fosse retomada. A frase da cruz: “Está consumado” refere-se a esse ato restaurador da relação de Deus com o homem. Como diz Wilma De Tommaso: “Não há como entender a Salvação se não compreender a queda.”[6]
4.2) O Êxodo
A saída do povo hebreu do Egito em direção à Terra Prometida, como sua libertação da escravidão, prefigura a libertação da humanidade da escravidão do pecado em direção a uma vida em comunhão eterna com Deus. Quando Moisés se dirige ao faraó, diz que Deus quer que o povo saia para lhe fazer uma festa no deserto, essa é a festa da comunhão (Ex 5,1). O que Deus mais quer é festejar com o seu povo, a alegria e o prazer de tê-lo novamente nessa comunhão de amor. Isso me faz lembrar a festa que o pai fez ao filho pródigo quando este voltou de seus percalços exploratórios do mundo, isto é, o mundo de pecados:
Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para o seu filho e o abraçou e beijou. (…) O pai disse aos seus servos: “Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos! Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado.” E começaram a festejar o seu regresso. (Lc 15,22-24)
Há uma passagem bíblica que mostra essa relação de Deus com o seu povo no caminho do deserto. Deus envia Moisés e os hebreus em direção à Terra prometida e lhe diz que mandará um anjo na frente do povo para guerrear contra as nações inimigas. A petição de Moisés, não querendo um anjo, mas que o próprio Deus vá com eles, é realmente tocante, como um filho que após redescobrir o valor da comunhão não deseja mais se afastar de seu pai. Mais tocante ainda é a resposta de Deus ao aceitar o pedido de Moisés para que Ele os acompanhe no deserto. É como aquelas conversas em que o pai se faz de quem não vai para ver a reação do filho pedindo “por favor, pai, vai comigo!”. Jesus fez isso quando encontrou dois discípulos no caminho de Emaús, e, quando eles chegaram ao seu destino, o mestre fez que ia se adiantando em seu caminho, mas os discípulos lhe disseram : “já é tarde, fica conosco”. Então entraram e Jesus ceiou com eles (Lc 24,28-29). Vejamos a reação de Deus ao pedido de Moisés, para que Ele mesmo vá com eles pelo caminho do deserto:
Vão para a terra onde manam leite e mel, mas eu não irei com vocês, pois vocês são um povo obstinado, e eu poderia destruí-los no caminho.(…) Moisés costuma va montar uma tenda do lado de fora do acampamento; ele a chamava Tenda do Encontro. Quem quisesse consultar a Deus ia à tenda, fora do acampamento. Sempre que Moisés ia até lá, todo o povo se levantava e ficava de pé à entrada de suas tendas, observando-o até que ele entrasse na tenda. Assim que Moisés entrava, a coluna de nuvem descia e ficava à entrada da tenda, (…) O senhor falava com Moisés face a face, como quem fala com seu amigo. Depois Moisés voltava ao acampamento; mas Josué, filho de Num, que lhe servia como auxiliar, não se afastava da tenda. Disse Moises ao Senhor: “Tu me ordenaste: ‘conduza este povo’, mas não me permite saber quem enviarás comigo. Disseste: ‘Eu te conheço pelo nome e de você tenho me agradado’. Se me vês com agrado, revela-me os teus propósitos, para que eu te conheça e continue sendo aceito por ti. Lembra-te de que esta nação é o teu povo”. Respondeu o Senhor: “Eu mesmo o acompanharei e te darei descanso”. Então Moisés lhe declarou: “Se não fores conosco não nos envies. Como se saberá que eu e o teu povo podemos contar com o teu favor, se não nos acompanhares? Que mais poderá distinguir a mim e a teu povo de todos os demais povos da face da terra?” O Senhor disse a Moisés: “Farei o que me pede, porque tenho me agradado de você e te conheço pelo nome” (Ex 33,3-17)
É perceptível a intimidade que Deus e Moisés mantinham, dada a profundidade da conversa que tiveram. Não se tratava de um Deus distante dando ordens a um servo, o próprio texto relata que Deus falava com Moisés face a face, como quem fala com um amigo. Mas se isso não estivesse descrito de forma tão explícita, o estaria pelo teor da conversa que se deu naquela tenda. O próprio nome que ele deu à tenda mostra como Moisés gostava de estar na presença de Deus, foi por ele chamada de “Tenda do Encontro”. Interessante que Moisés dispôs esse espaço para todos que quisessem falar com Deus, mas o texto diz que o povo apenas observava Moisés entrar na tenda enquanto a nuvem se mantinha sobre ela. É triste ver um povo que acabara de ser liberto para fazer uma festa da comunhão no deserto não querer se encontrar com Deus. Esse é o medo que tira o prazer da relação. Saíram do Egito, mas ainda mantinham o efeito do pecado dentro de si: estar longe de Deus, ainda eram escravos. Todos estavam querendo se afastar do encontro, a exceção de um jovem chamado Josué, que o texto diz que auxiliava Moisés e, quando este saía da Tenda do Encontro, permanecia ali. É como se a curiosidade do jovem dissesse: “eu também quero me encontrar com esse Deus, eu também quero me relacionar com ele.” Com certeza esse ato de prestar serviço ao outro – Moisés – e de ser quem estava mais próximo da Tenda do Encontro, depois de Moisés, foi visto por Deus como um sinal de que aquele homem também queria essa comunhão. Foi exatamente esse jovem Josué o escolhido por Deus para ser o sucessor do maior libertador que Israel já teve. Sim, Deus sempre vai olhar com um olhar especial para aqueles que se achegarem a ele buscando esse lugar do encontro. “Todo aquele que vem a mim, de maneira alguma eu o lançarei fora” (Jo 6,37)
4.3) A arte como símbolo da relação
Se a Tenda do Encontro foi construída por Moisés na intenção de que o povo se encontrasse com Deus, existiu no Êxodo uma tenda, ordenada por Deus, para que Deus se encontrasse com o povo, era o Tabernáculo:
Disse o Senhor à Moisés: “Diga aos israelitas que me tragam uma oferta. Receba-a de todo aquele cujo coração o compelir a dar. Estas são as ofertas que deverá receber deles: ouro, prata e bronze, fios de tecido azul, roxo e vermelho, linho fino, pelos de cabra, peles de carneiro tingidas de vermelho, couro, madeira de acácia, azeite para iluminação, especiarias para o óleo da unção e para o incenso aromático; pedras de ônix e outras pedras preciosas para serem encravadas no colete sacerdotal e no peitoral. E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles.” (Ex 25,1-8)
Acredito que todo pesquisador de arte sacra, bem como todo arquiteto e artista sacro, se emociona ao ler a descrição detalhada de cada utensílio que existia naquele santuário. Todas as medidas, tipos de tecidos, texturas, quantidades, alturas, larguras e cores que havia dentro dessa verdadeira obra de arte sacra que era o Tabernáculo é demasiadamente encantador. Deus não é um ser superior que espera uma relação distante ou uma não relação com o homem, pois, mesmo poderoso em toda sua glória, manifesta-se a nós, homens, por meio da beleza que a arte sacra produz. E essa é por essência uma beleza simbólica, d’Ele nasce toda essa beleza. Todavia, me cabe aqui apenas descrever o Tabernáculo em sua tenda, sem me ater aos utensílios que ele contém. Não obstante, o leitor pode se deleitar em plena aula de arquitetura e arte sacra ao ler a descrição detalhada que Deus faz da construção do Tabernáculo e seus elementos no livro Êxodo, nos capítulos 25 ao 31; esse último, inclusive, é uma citação dos artistas que foram escolhidos por Deus pelos próprios nomes para a elaboração da arte sacra do santuário. Aqueles sobre os quais Deus disse:
Enchi do Espírito de Deus, dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística para desenhar e executar trabalhos em ouro, prata e bronze para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira e executar todo tipo de obra artesanal (…) assim como as vestes litúrgicas (…) bem como os óleos para as unções e o incenso aromático para o lugar santo.” (Ex 31,1-11)
Eram arquitetos, ourives, marceneiros, pintores, costureiros, estilistas, perfumistas, entre outros que foram capacitados por Deus para essa grande obra. A beleza e a arte terão sempre espaço para a realização da manifestação gloriosa de Deus ao seu povo. O Tabernáculo era o símbolo visível de Deus para expressar o que desde o Éden Ele queria fazer com o homem: a retomada da relação. Eis a arte ao serviço da vontade de Deus.
4.4) Um Deus que deseja habitar conosco
Com a construção do Tabernáculo, a nuvem que se movia durante o dia e a coluna de fogo que brilhava a noite, estava constituída a Presença de Deus sobre e entre o seu povo. O livro do Êxodo termina, justamente, com o levantamento e consagração do Tabernáculo e a nuvem entrando nele e enchendo toda a tenda. Por fim, Deus cumpre o que promete a Moisés, estará com eles por toda a viagem até a Terra prometida.
Agora, já contextualizados o Tabernáculo e seu sentido, quero destacar um elemento interno que responderá nossa pergunta sobre o que fez o artista Rupnik colocar a Virgem tecelã na cena da construção do Tabernáculo no mosaico da fachada Norte do Santuário de Aparecida. O Véu do Tabernáculo:
Faça um véu de linho fino trançado e de fios de tecido azul, roxo e vermelho, e mande bordar nele querubins. Pendure-o com ganchos de ouro em quatro colunas de madeira de acácia revestidas de ouro e fincadas em quatro bases de prata. Pendure o véu pelos colchetes e coloque atrás do véu da arca da aliança. O véu separará o Lugar Santo do Lugar Santíssimo. (Ex 26,31-33)
Esse maravilhoso tecido bordado era o que separava, mas também dava acesso ao Santo dos Santos; no devido tempo, o Sumo Sacerdote Aarão entrava por esse véu ao Lugar Santíssimo para oferecer sacrifício por si e pelo povo para remissão de pecados, e assim o povo era santificado, isto é, separado dos seus pecados e consagrado a Deus.
A presença de um véu como definição do espaço santíssmo e acesso a esse lugar também aparece, muitos anos mais tarde, na construção do grande Templo de Salomão. Na época em que Jesus viveu na terra também havia esse véu no templo de Jerusalém. Esse véu simboliza, para os cristãos, o próprio Jesus, que como sumo sacerdote entrou no Lugar Santíssimo para ofertar por nossos pecados e, por oferta de expiação, deu a si mesmo como cordeiro agradável ao Senhor. O seu próprio corpo foi a sua oferta e quando Ele assim o fez, dando sua vida no calvário, o véu que havia no templo se rasgou de alto a baixo (Mt 27,51). Mesmo em pleno momento de dor e agonia, um utensílio de arte sacra litúrgico cumpriu seu ofício, pois com o sacrifício de Jesus não havia mais separação entre os homens e Deus. Jesus é o sumo e suficiente sacerdote para remissão eterna de pecados, mas é também o próprio véu, pelo seu corpo, que foi rasgado naquela cruz.
Pelo cumprimento dessa vontade fomos santificados, por meio do sacrifício do corpo de Jesus Cristo, oferecido uma vez por todas. Dia após dia, todo sacerdote apresenta-se e exerce os seus deveres religiosos; repetidamente oferece os mesmos sacrifícios, que nunca podem remover pecados. Mas quando este sacerdote [Jesus] acabou de oferecer, para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à direita de Deus. (…) porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados. Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo. (Hb 10,10-20)
O véu do templo, e antes do Tabernáculo, é a obra de arte sacra que simboliza o corpo de Jesus. Por esse véu, que foi rasgado, temos novamente o acesso de comunhão com esse Deus que desde o Éden quer se relacionar com a humanidade. A cena da construção do Tabernáculo com a Virgem tecelã tecendo o véu nos mostra que Maria tecia em seu ventre aquele que nos daria novamente o acesso da relação com Deus Pai: Deus o Filho, que veio ao mundo em forma corpórea humana e assim se fez Deus-homem, no ventre de Maria.
Maria tece a carne da palavra tecendo o véu do templo. Esse véu que une as duas partes da tenda, a da humanidade e a da divindade, é precisamente a carne, isto é, a humanidade do Filho. A morada de Deus é a humanidade vivida filialmente (RUPNIK, 2022, p. 85)
É precisamente o Filho de Deus que ultrapassa o abismo das duas naturezas, adaptando o seu próprio tropos, isto é, o modo de existir que Ele tem na vida divina, na natureza humana. E também a existência criada sofre modificações com essa união, não da sua natureza, mas no seu tropos,na sua forma de existência, passando a viver a natureza humana à maneira de Deus (RUPNIK, 2022, p. 65)
Lado direito da Fachada Norte – Construção da tenda do encontro
Santuário de Nossa Senhora de Aparecida – 2021 – Centro Aletti – LIPA
5) Considerações finais
Se no Tabernáculo Deus habitava entre os homens, na Nova Aliança Maria tecia em seu ventre a parte da tenda que já prefigurava uma nova relação, em que Deus não estaria mais entre, mas na humanidade, por meio dessa Encarnação tecida com fio de escarlate. Em Jesus, Deus se faz Homem e habita em nós.
Deus desce e habita em uma tenda para caminhar com o povo. Tem que estar ao lado do povo, ou o povo não consegue prosseguir. Deus começa a preparar a nossa mente para a verdade: a única habitação verdadeira de Deus sobre a terra é a humanidade. E essa tenda é a primeira imagem de Deus que desce e passa a morar entre os homens. Ele se sente em casa na humanidade. É Deus quem peregrina atrás do homem, e não o homem quem peregrina até Deus. É verdadeiramente uma peregrinação de Deus, que busca não só encontrar o homem, mas também habitar nele (RUPNIK, 2022,p. 84)
Referências
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FRANCESCO, Papa. Homilia do Santo Padre: Viagem apostólica do Papa Francisco à Polônia por ocasião da XXXI Jornada Mundial da Juventude em Czestochowa. Disponivel em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2016/documents/papa-francesco_20160728_omelia-polonia-czestochowa.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2022
MENDONÇA, José Tolentino. A mística do instante: O tempo e a promessa.7 Ed. São Paulo: Paulinas, 2016. (coleção Travessias)
RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica. 1 Ed. Brasília: Edições CNBB. 2019.
RUPNIK, Marko Ivan. Segundo o Espírito: A teologia espiritual no caminho com a Igreja do Papa Francisco. 1 Ed. Brasília: Edições CNBB. 2019.
RUPNIK, Marko Ivan. Êxodo. Caminho para a Libertação. 1 Ed. Aparecida: Editora Santuário. 2022.
SHEDD, Russell. Bíblia Shedd. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2 Ed. São Paulo: Vida Nova. 1997.
TOMMASO, Wilma Steagall. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Claudio Pastro. 1 Ed. São Paulo: Paulus. 2017.
TOMMASO, Wilma Steagall. Beleza e arte contemporânea na concepção de Marko Ivan Rupnik. 2019. Disponível em: https://www.academia.edu/40410469/Beleza_e_arte_contempor%C3%A2nea_na_concep%C3%A7%C3%A3o_de_Marko_Ivan_Rupnik Acesso em 20 de agosto de 2022
TOMMASO, Wilma Steagall. A Beleza é Pascal. Artigo publicado em 10.04.2020. Disponível em: https://offlattes.com/archives/2467 Acesso em 20 de agosto de 2022
TOMMASO, Wilma Steagall. Anunciação: a Virgem Tecelã. Artigo publicado em 24.03.2021. Disponível em https://offlattes.com/archives/8170 Acesso em 20 de agosto de 2022
TORNIELLI, Andrea. Uma oração do coração da grande tradição mariana. Artigo publicado em 23.03.2022. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-03/editorial-papa-francisco-oracao-tradicao-mariana.html Acesso em 20 de agosto de 2022
Notas
[1] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-03/editorial-papa-francisco-oracao-tradicao-mariana.html Acesso em 18 de agosto de 2022.
[2] https://www.pinterest.es/pin/350999364679745102/visual-search/?x=10&y=10&w=519&h=154&cropSource=6&imageSignature=b3bcbf6415a9293881e57048e041006b, acesso em 20 de agosto de 2022
[3] https://offlattes.com/archives/8170, acesso em 20 de agosto de 2022
[4] https://offlattes.com/archives/8170 , acesso em 20 de agosto de 2022
[5] https://www.centroaletti.com/opere/cappella-dellospedale-beata-ana-delle-hermanas-hospitalarias-madrid-2007/, acesso em 20 de agosto de 2022
[6] Reuniões do grupo de pesquisa “Arte Sacra Contemporânea: religião e história” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.







