Revista Laboratório Temática 1 – A imagem de Deus: Religião, História e Arte

A beleza na arte sacra

Introdução

Indo para o meu trabalho, andando pela calçada, naquela manhã fria de inverno, vi uma senhora a regar as flores do jardim frontal de um templo. Aquilo tocou meu coração e me fez parar e conversar com a senhora que nunca tinha visto antes. Pedi-lhe a gentileza de me conceder fotografar aquele momento; a senhora não só permitiu a fotografia, como também abençoou a minha saída. Tempos depois, em uma reunião de um grupo de pesquisa em arte sacra, ouço a frase: “uma senhora regando um jardim é beleza”, imediatamente fui trasladado em minha mente e em meu espírito, de volta no tempo e no espaço, direto ao local da cena em que a senhora regava o jardim do templo, numa manhã de inverno, e percebi que aquilo que me tocou profundamente naquele dia e me fez parar o trajeto, interrompendo a rotina ao ponto de abordar uma senhora desconhecida para registrar aquele momento, se chama Beleza.

Roger Scruton, filósofo e crítico cultural inglês, especializado em estética e beleza, em seu livro Beleza (2015), inicia o capítulo A beleza cotidiana da seguinte forma: “O melhor lugar para dar início à exploração da beleza cotidiana é o jardim, onde o ócio, o aprendizado e a beleza se unem numa libertadora experiência de familiaridade” (p. 89). Trata-se de uma beleza que não é apenas aparente, mas que evoca algo muito maior que o simples prazer estético. Essa Beleza faz o uso da estética, posto que por ela é expressada, quer seja na plástica das cores, do movimento ou do som; mas não se define por essa estética e nem a tem como objetivo final. Muito diferente da beleza clássica antropocêntrica, em que a forma define o conceito do belo e do perfeito baseado na capacidade humana, o belo da sacralidade transpõe essas barreiras físicas e se funda no gesto para transcender o homem do seu estado natural para o seu estado espiritual. Ela o toma dessa Terra, tirando-o do plano físico e levando-o ao plano espiritual, de volta ao conceito original do Éden, que evoca a Deus como centro de toda a criação e na sua plena vontade de querer relacionar-se com o homem, onde o encontra todo fim de tarde para conversar. É dessa Beleza que trato aqui. Para tanto, porém, faz-se necessário trazer, ainda que brevemente, uma definição geral de beleza, para, então, diferenciá-la da beleza na arte sacra.

Segundo a definição do Departamento de Pesquisa e Publicações da Oxford University, a Oxford University Press, “Beleza é uma característica de uma pessoa, animal, lugar, objeto ou ideia que oferece uma experiência perceptual de prazer ou satisfação”. Por essa definição, entende-se que tudo aquilo ou aqueles que nos proporcionarem o que desejamos é belo. Já para o escritor e filósofo Umberto Eco (2014), “a Beleza jamais foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu faces diversas segundo o período histórico e o país: e isso não apenas no que diz respeito à beleza física (do homem, da mulher, da paisagem), mas também no que se refere à Beleza de Deus, ou dos santos, ou das ideias…” (p. 14). Considerando esse conceito mais relativista que Eco traz à beleza, aquilo que pode ser belo para um grupo de pessoas pode não ser para outro. Nesse aspecto, a beleza é convencional, isto é, um acordo entre os membros de uma determinada organização de que um objeto ou comportamento é belo Mas esse mesmo objeto ou comportamento pode não ser aceito como belo em uma outra organização, e essa decisão de convenção parte de regras morais, sociais, religiosas ou puramente estéticas, que previamente regem a sociedade em que o objeto ou comportamento está inserido. Com isso, é compreensível que uma obra de arte seja aceita como bela para um período artístico e não seja considerada bela para outro – posto que o conceito de belo de uma escola artística pode não ser admitido em outra. Isso esclarece o motivo pelo qual o conceito de beleza para a arte sacra difere dos conceitos de beleza que aprendemos ao estudarmos o período clássico.

1. A beleza da arte clássica grega

A Grécia antiga evidenciava como belo a proporcionalidade, a harmonia e o equilíbrio das formas, com o objetivo de alcançar a perfeição da representação naturalista, tanto nos corpos quanto na arquitetura, um conceito que, após o fim da Idade Média, foi retomado pelo Renascimento. No entanto, a arte sacra busca algo muito além da referência estética como identificação da beleza.

Quando o cristianismo surgiu, grande parte do mundo estava dominada, politicamente, pelo Império Romano, e influenciada pela filosofia grega; é o que chamamos de mundo greco-romano. O pensamento e a arte grega expressavam o conceito do antropocentrismo, que colocava o homem no centro de tudo, e isso significa que tudo o que é relativo à capacidade humana ficava em evidência. A ideia, o desenvolvimento humano, o crescimento do homem em sua individualidade e sua coletividade eram apreciados e colocados como objeto de questionamentos em grandes reuniões na ἀγορά/ágora,que eram os espaços feitos para essas discussões. Os sentimentos humanos, a forma de ter raiva, ira, alegria, o jeito de festejar, as paixões, os desejos etc., absolutamente tudo o que se referia ao homem era o principal interesse. Disso se originam muitos mitos de deuses e semideuses que refletem as vontades humanas, como o amor em Afrodite, a força de Hércules e o ciúme de Hera ao ver que Zeus a traía com as humanas. A simetria das formas, a proporção e o equilíbrio eram elementos trabalhados com o objetivo de atingir a harmonia visual, para a construção do corpo perfeito, seja nos músculos do masculino ou nas curvas do feminino, para expressar a perfeição do homem desde a sua capacidade intelectual até o seu exterior.

Imagens 1 e 2 – Aphrodite Kallipygos.


A escultura acima, vista de frente e de costas nas fotografias das Imagens 1 e 2, é de Vênus[1], a deusa romana que é a Afrodite grega, deusa do amor, da beleza e da sexualidade. A estátua foi esculpida em mármore, na Roma antiga, por um autor desconhecido, e acredita-se ser uma cópia de uma estátua grega do período helenístico. A posição do corpo de Afrodite nessa escultura é característica do que os gregos antigos chamavam de ἀνάσυρμα/anasyrma. Trata-se do ato das mulheres levantarem as vestes para mostrar as partes genitais ou as nádegas. Essa prática, além do erotismo, também tinha caráter religioso em culto a alguns deuses gregos, com a qual se acreditava expulsar demônios e vencer guerras. Trazia sempre a ideia de a mulher se expor, e, em alguns casos, a exposição não era feita para outrem, mas a mulher o fazia para si mesma, virando-se para olhar o seu próprio corpo. A famosa estátua acima se chama Ἀφροδίτη Καλλίπυγος/Aphrodite Kallipygos, que significa “Afrodite das belas nádegas”; ela é o exemplo mais conhecido dessa autoexposição feminina, bem como da demonstração do poder de Afrodite por meio da beleza.

Para fins de comparação, tomemos como exemplo contemporâneo a forma como o cronista brasileiro Álvaro Moreira se utiliza de toda essa beleza de Vênus para expressar todo o desejo que é gerado em seu personagem, ao olhar para uma mulher saindo do mar na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro:

Foi na praia do Flamengo. Via-se de roupão de banho, cujas dobras mais salientavam um verdadeiro modelo de estatuária grega. Atirou-se na água e se não fosse a flanela que lhe cobria extraordinária plástica, poderia ser comparada a Vênus (…). Fitei-a, fitei-a de uma maneira capaz de deixar seco todo molhado reino de Netuno. Saiu. Passou-me por perto, pingando, e o meu olhar teve maior eloqüência que um volume inteiro de discursos. […] (MACÁRIO, 2005, p. 47).

Ao lançar sobre o mar a visão que o responsabiliza pela mais forte reminiscência do paganismo o autor evoca o nascimento de Afrodite e impregna este mar de um misticismo de caráter sensual que será em seguida compartilhado com cada mulher que este mar envolve. É desta maneira que o escritor compõe sua recriação da Grécia pagã e voluptuosa no litoral carioca, transformando o mar num eterno e sagrado templo de Vênus e cada banhista numa deusa da beleza e do amor presentificada (MACÁRIO, 2005, p. 138).

2. Transcendência e Teocentrismo

O cristianismo traz uma visão de beleza completamente diferente do conceito clássico grego. O homem já não é mais o centro do universo; ele é pó, feito de barro. Ele deixa de olhar para si para olhar para Deus. Essa é uma nova perspectiva descentralizada de si mesmo para colocar Deus no centro de tudo, como criador e provedor de todas as coisas. A condição humana vista dessa forma fica esclarecida ao lermos o livro histórico de Jó, em sua indagação a Deus, diante de sua terrível situação, acometido da lepra, um flagelo mortal incurável, que lhe corroia a carne e a pele e lhe isolava de todo relacionamento humano para evitar contágio: “Que é o homem para que lhes dê importância e atenção?” (Jó 7.17). Davi, em um de seus salmos, declara Deus como criador do universo e o superlativa a tudo e a todos, como também estabelece ao homem uma condição não fundamental a tudo, embora ainda assim tenha de Deus atenção: “Quando contemplo os teus céus, obra das tuas mãos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: que é o homem, para que com ele te importes?” (Sl. 8.3,4). Observemos a fotografia a seguir, eu a chamo de “Transcendência”[3]. Ela ilustra bem, ainda que não intencionalmente, essa descentralização do homem. É uma boa maneira de exemplificarmos o teocentrismo, Deus no centro de tudo, se a observarmos de forma alegórica.

Imagem 3 – Transcendência (Escadaria do Museu do Vaticano – Roma)


A escadaria do Museu do Vaticano, em Roma, é uma das escadarias mais visitadas no mundo. Ela foi construída em 1932, pelo arquiteto italiano Giuseppe Momo (1875-1940), e tem a forma espiral e helicoidal, ou seja, as suas bordas se expandem à medida que se afastam do chão. O ambiente é altamente sugestivo a levar o homem a se ligar a Deus, e “religar a Deus” é exatamente o significado da palavra religião.

A fotografia foi tirada em “câmera subjetiva”, como se o fotógrafo olhasse na perspectiva de uma testemunha do ato de contato do homem fotografado com o local transcendente. Ele está no alto, mas não é o objeto de foco para o qual o homem na escadaria se volta; ele não se envolve na cena, deixando o ato acontecer, enquanto apenas observa. O fotógrafo desloca o homem do centro da imagem, colocando-o à direita de quem o contempla, para que o centro da fotografia seja ocupado pela Presença que a transcendência da imagem sugere. Já não é mais o antropocentrismo que rege o ambiente, ele cede espaço ao que não se vê; a pequenez do homem nada é diante dessa grandiosidade percebida no espaço.

A imagem movimenta-se em espiral, levando-nos a vê-la de forma cíclica, como cíclica é a vida e suas fases, as intempéries e as vitórias. Já que a imagem revela o fim da espiral ao chão, ela torna-se a representação do próprio homem, finito, que nasce do mesmo solo para o qual, um dia, voltará. A luz amarelada que enche o clima de cor quente, contrastando com o piso preto-azulado frio, convida o homem, por meio de dois pontos fortes de luz na base da espiral, a sair de sua finitude e frieza e ascender aos mais altos e nobres pensamentos, por meio da escada que ele sobe, ladeado por anjos que adornam o corrimão como comitiva a guardá-lo, enquanto ele arrisca transcender do seu estado de frieza para um estado de luz.

Nessa jornada há duvidas e guerras interiores, entre sua própria carne e seu espírito. O que é carne luta contra o que é espirito e faz o homem perturbar-se. Essa é a realidade da busca do homem pelo bem, contra a sua própria natureza caída, tal como as faixas de cada degrau da escada trazem a cor clara que atravessa o homem em faixas de mesmo tom em sua blusa, cortando o preto azul que nele também está; nessa dualidade da vida, o homem recebe forças para continuar sua jornada ao que é Eterno e mantém seu olhar fixo no que lhe espera além.

O papa Bento XVI, falando aos artistas,fala deuma beleza que causa essa transcendência:

Uma função essencial da verdadeira beleza consiste em comunicar ao homem um ‘sobressalto’ saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o cotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente dessa forma o ‘desperta’ abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o (TOMMASO, 2017, p. 186).

3. A beleza da mulher cristã

Salomão, em um de seus livros da sabedoria, critica aquilo que os gregos convencionaram como beleza, e que é fortemente representada em Afrodite: “Enganosa é a beleza [entendida pela beleza puramente física] e vã a formosura, mas a mulher que teme o Senhor será elogiada” (Pr 31.30). Ao longo do capítulo 31 de Provérbios, o sábio trata de uma beleza de atitudes e de comportamentos de uma mulher, para então encerrar com a crítica escrita acima sobre a beleza física, vista como bela em si mesma; o autor discorre sobre a elegância e o trato de uma mulher ao conduzir bem a sua casa, os seus filhos, o seu marido, as suas funcionárias domésticas, o seu trabalho, as suas obrigações, suas relações financeiras, seus negócios, seu modo de vestir e a sua prudência em se preparar para o dia do imprevisto. Essa é a beleza exaltada pelo cristianismo e que, embora também seja refletida na forma de uma mulher se vestir, identifica-se igualmente pelo seu caráter e tratamento com os seus subordinados, pares e superiores. Jesus disse “Nisto serão reconhecidos como meus discípulos, se amarem uns aos outros.” (Jo 13:35).

Cristão é todo aquele que segue os comportamentos de Cristo, “em Antioquia, os discípulos foram, pela primeira vez, chamados de cristãos” (At 11.26). Obviamente, Salomão, ao falar de uma beleza interior, não conhecia Jesus, posto que nasceu muito antes da cruz; todavia, o cristianismo faz uso de todo o período bíblico velho testamentário para interpretá-lo à luz do Novo Testamento, que cumpre toda a lei mosaica e as profecias em Jesus.

Imagem 4 – Mesa posta


4. Revelação e Transformação (A verdade, o Bem e a Beleza)

Até o momento, apresentei uma definição geral de beleza, uma visão relativista de Umberto Eco e a diferença entre o belo na escola grega clássica antropocêntrica, e na visão cristã teocentrista, apresentando um forte contraste entre a mulher bela da Grécia antiga e a cristã. Não desejo, porém, ao citar as práticas e atitudes inerentes à mulher que teme ao Senhor, descrita nos provérbios de Salomão, induzir à crença de que a beleza sacra consiste em um conjunto de regras do que pode ou não ser feito. Não se trata de uma fórmula puramente moral, de caracterização e comportamentos para enquadrar algo ou alguém como belo, o que incidiria no engano de acreditar que a beleza sacra se vincula a um padrão equiparável à normas de etiqueta em um evento social. O processo é inverso, tem muito mais a ver com um encontro com o divino, por meio da revelação, da experiência da transcendência explicada anteriormente pelo papa Bento XVI e ilustrada na fotografia do homem na escadaria do Vaticano. É a revelação da verdade que transforma o homem no seu interior, e essa transformação se expande para todos os seus atos e formas de se expressar no mundo. O Mistério ocorre de dentro para fora.

Segundo o artista plástico sacro contemporâneo Marko Ivan Rupnik, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, existe uma tríade formada pela verdade, o bem e a beleza; esses elementos são temas de discussão já tratados desde a Grécia de Platão, mas a religião cristã toma-os em um novo significado. Na concepção cristã, a verdade do Evangelho é Jesus Cristo. Quando uma pessoa recebe essa verdade, tem gerado em si o bem e, para que esse bem seja pleno, é necessário que haja beleza. Essa tríade é intrínseca, ou seja, nenhum dos seus componentes pode ser separado. Não existe beleza se a verdade não for revelada ao homem e essa não gerar nele a crença que resulte no bem, pois a beleza é justamente a manifestação exterior desse bem concedido ao homem por meio da revelação da verdade. “A beleza faz coroar, como uma auréola de inapreensível esplendor, a estrela da verdade e do bem e sua indissociável união” (BALTAZAR apud TOMMASO, 2017, p. 185).

Essa verdade que é revelada ao homem é a salvação em Cristo. Não há Mistério sem Ele, “por que dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas” (Ro 11.36). Se não for por Ele, nada acontece. Ele é “o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14.6). Quando Ele, a verdade, é revelado a alguém, o milagre acontece. A Sua transfiguração no Monte Tabor mostrou a Pedro, a Tiago e a João um Deus-Pai que eles não conheciam. O reino dos céus foi-lhes aberto para que pudessem ver “aquilo que os olhos não viram e nem os ouvidos ouviram, nem jamais penetrou o coração humano e que Deus tem preparado para aqueles que o amam.” (1Cor 2.9). Ao ver o Filho, puderam contemplar o Pai e as inefáveis coisas que aguardam os fiéis na Jerusalém celeste, “quem vê a mim vê ao Pai” (Jo 14.9). Uma porta se abriu por meio da revelação da verdade para eles e, por meio dessa porta, eles adentraram aos mais profundos lugares celestiais.

Ora, se as coisas que são reveladas ao homem por meio dessa verdade são tão maravilhosas a ponto de serem inefáveis, inaudíveis e indescritíveis, não podem, portanto, ser retratadas por meio da representação naturalista, a busca da perfeição das formas do corpo humano. “O homem natural não pode discernir as coisas espirituais, mas o homem espiritual a tudo discerne e por ninguém é discernido.” (1Cor 2.14-16). Uma arte naturalista não alcança o indizível. Coisas materiais se explicam com coisas materiais, mas as espirituais se revelam pelas espirituais. “O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do Espírito é espírito.” (Jo 3.6). Quando Nicodemos, mestre fariseu judeu, foi encontrar com Jesus de noite para aprender sobre os mistérios dos céus, Jesus começou a explicar-lhe a necessidade de nascer de novo e morrer para as coisas desse mundo para viver desde já aqui na Terra as coisas do Eschaton, as coisas que estão por vir, isso é, uma nova vida em Cristo. Nicodemos, todavia, nada entendeu; a reação de Jesus diante da incompreensão de um mestre fariseu foi a pergunta: “Você é mestre em Israel e não conhece essas coisas? […] Eu lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram, como crereis, se vos falar de coisas celestiais?” (Jo 3.10,12).

A resposta a essa pergunta está na continuação do trecho da primeira carta do apóstolo Paulo aos coríntios: “Porque quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.”(1Cor 2.16). Por esse motivo, Rupnik diz que “a arte cristã começou nas catacumbas, no subsolo, lugar da morte, na contramão da arte clássica greco-romana da época, abandonando completamente a ideia de perfeição” (TOMMASO, 2019, p. 3). O filósofo russo Nicolas Berdiaev, cujos pensamentos de distanciamento da arte clássica grega pela arte sacra cristã são diretrizes para o artista Rupnik, acredita que “nada de verdadeiramente clássico e perfeitamente completo e realizado sobre a terra é possível no mundo cristão” (TOMMASO, 2019, p. 3).

Após a revelação da verdade, que gera em nós o bem, somos chamados para uma transformação e aí está inserida a beleza. Ela é o reconhecimento externo e a manifestação do bem gerado em nós quando recebemos essa verdade em forma de Graça, Jesus. O papa João Paulo II disse: “a beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro.”[4]Se a verdade em nós revelada gera o bem e esse bem não atinge a expressão da beleza, tornamo-nos vazios, pois

ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria” (1Cor 13.1).

De que me valeria ter a experiência da transcendência e conhecer todos os mistérios inefáveis, se esse conhecimento não gerasse em mim uma mudança que não transformasse primeiro a mim e depois aos que estão ao meu redor? É necessário que esse bem que existe dentro de mim se torne beleza, pois, como disse o pensador russo Vladimir Solov’ev “O bem que não se torna beleza se torna um fanatismo, destrói o homem, é um monstro. Em nome da verdade foram cortadas muitas cabeças, com a bandeira de ideia humanista, a época moderna assassinou milhões de pessoas” (TOMMASO, 2019, p. 6). Portanto é preciso que esse conhecimento do Novo de Deus ocasione em mim uma libertação, por meio da qual viverei o novo nascimento dado a todos os que creram. “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. (Jo 8.32) Para Berdiaev, essa libertação é justamente a vida de Cristo em nós:

Para ele [Berdiaev] a liberdade, que nada mais é que o espírito, é o imperativo por excelência da humanidade. O homem que está condenado por sua natureza, que se pode qualificar, indiferentemente para ele, de livre, espiritual ou ainda pessoal, a ser divino-humano, na medida onde o espírito – ou a liberdade – é a imagem do Deus no homem. E o ser teândrico, esse homem semelhante a Deus, é a pessoa. O Cristo foi e é em toda a eternidade a pessoa; Deus se fez homem, se fez carne, mas a humanidade inteira vem por Ele se fazer à sua semelhança, a se divinizar; o que para Berdiaev não é outra coisa senão se libertar, realizar sua liberdade espiritual. A segunda hipóstase trinitária é a pessoa, e é a razão pela qual Berdiaev escreveu que “a antropologia autêntica está contida na cristologia” (Berdiaev apud TOMMASO, 2019, pp. 3-4).

Uma vez que a mim foi revelada a verdade, tenho essa liberdade “e agora não vivo mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). Ele está em mim e isso me define como um ser teândrico, aquele que é simultaneamente divino e humano, e esse é o modo pelo qual Deus é manifestado através da humanidade. Quando a Virgem Maria, já tendo concebido em seu ventre o filho de Deus por obra e Graça do Espírito Santo, foi visitar a sua prima Isabel, que também estava gestante por um milagre divino, a cumprimentou ao chegar; a criança que estava no ventre de Isabel, João Batista, agitou-se assim que Isabel ouviu a saudação da Virgem que carregava Jesus. Isabel encheu-se do Espírito Santo ao ponto de testificar sobre Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (Lu 1:42). Isso é beleza! É esse fruto dentro do ventre de Maria a transformação que, gerando o bem em nós, manifesta algo ao mundo. Maria, de tão feliz, salmodiou ao Senhor, pois quem estava dentro dela gerou mudança, primeiro nela, e também transformou os que estavam perto dela. A beleza expressa às pessoas que estão ao redor o bem que há dentro de nós. Maria não estava vazia “como um sino que tine”, pois dentro dela havia amor. Cristo é esse Amor e essa Beleza.

5. Considerações finais

De acordo com a mensagem do papa Paulo VI dirigida aos artistas, por ocasião do Concílio Vaticano II, em 1965, ele proclamou que:

A beleza como a verdade é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos. […] Recordai-vos que vós sois os guardiões da beleza do mundo” (apud TOMMASO, 2017, p. 185).

A beleza do Evangelho e da arte que o expressa é Cristo. E se a beleza é Cristo, então essa beleza é pascal, por que Ele veio como um menino, gerado no ventre da virgem, mas cresceu e sofreu a morte e morte de cruz:

Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores e que sabe o que é padecer. E, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. Certamente ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o considerávamos como aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado por causa das nossas transgressões e esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos sarados (Is 53:3-5).

Essa morte nos causa vida e, por essa nova vida que vivemos, nós compartilhamos essa beleza pascal na κοινωνία/koinonia, termo grego para se referir à comunhão entre os irmãos. Somente alguém que viveu a verdade da Igreja primitiva pode expressar a beleza do cristianismo de maneira tão profunda quanto Lucas descreveu no seu relato da convivência diária dos primeiros cristãos: “Da multidão dos que creram era só um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente seus os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si, de forma que ninguém padecia necessidade.” (At 4.32).

A outra palavra para beleza, que os primeiros cristãos amavam, era o símbolo, […] O símbolo era a mesma coisa: uma unidade orgânica de mundos distintos, de tempos diferentes, do humano e do divino, do histórico e do escatológico, uma unidade orgânica realizada em uma pessoa, em Jesus Cristo. Pavel Florensky, o grande gênio e mártir russo já citado, dizia que “o sentido da vida espiritual, de cada ato cristão, é chegar a ser belo”. Ou seja, ser um símbolo que dentro da história abre uma janela ao Eschaton, no culminar de tudo em Cristo. Para o mesmo Pavel Florensky, o testemunho é uma realidade de beleza, porque é simbólico (TOMMASO, 2020, p. 1).

O testemunho, o gesto, o ato consumado é o bem materializado, a beleza acontecendo à medida que o pão é compartilhado, o vinho é tomado, os donativos são distribuídos, o abraço é dado, o sorriso é retribuído, e o jardim frontal do templo é regado numa manhã fria de inverno.

O papa João Paulo II, em sua Carta aos artistas de 23 de abril de 1999, fala da importância do artista e da arte sacra, tamanha a sua responsabilidade, sobre o manifestar dessa beleza revelada a nós e em nós por Cristo:

14. Com esta Carta dirijo-me a vós, artistas do mundo inteiro, para vos confirmar a minha estima e contribuir para o restabelecimento duma cooperação mais profícua entre a arte e a Igreja. Convido-vos a descobrir a profundeza da dimensão espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formas expressivas mais nobres. Nesta perspectiva, faço-vos um apelo a vós, artistas da palavra escrita e oral, do teatro e da música, das artes plásticas e das mais modernas tecnologias de comunicação. Este apelo dirijo-o de modo especial a vós, artistas cristãos: a cada um queria recordar que a aliança que sempre vigorou entre Evangelho e arte, independentemente das exigências funcionais, implica o convite a penetrar, pela intuição criativa, no mistério de Deus encarnado e contemporaneamente no mistério do homem.

5. Esta manifestação fundamental do « Deus-Mistério » apresenta-se como estímulo e desafio para os cristãos, inclusive no plano da criação artística. E gerou-se um florescimento de beleza, cuja linfa proveio precisamente daqui, do mistério da Encarnação. De facto, quando Se fez homem, o Filho de Deus introduziu na história da humanidade toda a riqueza evangélica da verdade e do bem e, através dela, pôs a descoberto também uma nova dimensão da beleza: a mensagem evangélica está completamente cheia dela.

A arte sacra é a senhora observadora do cristianismo, a guardiã da beleza da história da Igreja e a testemunha fiel da santa fé em Cristo por meio das obras que produz. Cabe, pois, ao artista sacro, detentor dessa habilidade artística, expressar essa beleza do evangelho, que é Cristo, por meio da arte, bem como manifestar aos homens o bem e a verdade por meio dessa beleza. Quando você compartilha o que está em você com o outro, você transforma o bem em beleza.

Bibliografia

ECO, Humberto (org.). História da Beleza. 4 Ed. Rio de Janeiro: Record. 2014.

MACÁRIO, Paula Gomes. Neo Gregos da Belle Époque brasileira. Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária. Unicamp Instituto de Estudos da Linguagem 2005.

SCRUTON, Roger. Beleza. 1 Ed. São Paulo: É realizações, 2015.

TOMMASO, Wilma Steagall. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Claudio Pastro. 1 Ed. São Paulo: Paulus. 2017.

TOMMASO, Wilma Steagall. Beleza e arte contemporânea na concepção de Marko Ivan Rupnik. 2019. Disponível em: https://www.academia.edu/40410469/Beleza_e_arte_contempor%C3%A2nea_na_concep%C3%A7%C3%A3o_de_Marko_Ivan_Rupnik

TOMMASO, Wilma Steagall. A Beleza é Pascal. Artigo publicado em 10.04.2020. Disponível em: https://offlattes.com/archives/2467

Notas

[1] Nápoles, Museo Arqueológico Nacional. Afrodita Kallipyge. Autor da fotografia: Miguel Hermoso Cuesta, com permissão de uso pela Creative Commons License. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Afrodita_Kallipyge_N%C3%A1poles_01.JPG . Acessado em 14 de maio de 2020.

[2] Foto de arquivo pessoal cedido por Gabriel Messine.

[3] Carta aos artistas, do papa João Paulo II, em 23 de abril de 1999.

Sobre o autor

Marcos Oliva

Formado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Nove de Julho. Pós-graduado em Cinema, Fotografia e Vídeo: Criação em Multimeios pela Anhembi Morumbi. Pesquisador do grupo Arte Sacra Contemporânea: Religião e História, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.