Revista Laboratório Temática 1 – A imagem de Deus: Religião, História e Arte

Um olhar para a arte Naïf

1. Introdução à arte Naïf

A arte Naïf e os artistas que a criaram no início do século XIX se tornaram muito conhecidos na Europa, mas quem eram esses pintores e como essa expressão surgiu? Para chegar a uma resposta, temos que fazer uma viagem ao passado e olhar a história da arte daquela época. É interessante notar que, de início, os artistas naïf não atraiam muito a atenção; e talvez os pintores naïf nunca tivessem chegado ao conhecimento do público, não fosse o fascínio que outros artistas europeus do movimento de vanguarda sentiram por seus trabalhos. Como exemplo, as obras de pintores naïf como Henri Rousseau (1844-1910), Niko Pirosmani (1862-1918), Ivan Generalic (1914-1992), André Bauchant (1873-1958) e Louis Vivin (1861-1936) foram muito criticadas por seus autores não terem nenhuma instrução acadêmica. Muitas vezes chamadas de pinturas primárias ou infantis, esse estilo denominado também de arte primitiva moderna teve reflexo nos estilos de mestres de vanguarda como Pablo Picasso (1801-1973), Henri Matisse (1869-1954), Joan Miró (1893-1983), Max Ernst (1891-1976) e Mikhail Larionov (1881-1964). Todos apresentavam despojamento da forma e da técnica, compartilhando uma mesma linguagem mais informal. No exemplo de Picasso, há a nítida referência à arte primitiva africana, na busca por uma expressão vanguardista (STRICKLAND, 2002).

O termo originou-se no século XIX, mais precisamente em 1886, quando houve a exposição da obra “Um dia de carnaval”, de Henri Rousseau, no Salon des Indépendants, em Paris, e que chamou atenção dos artistas modernistas da época.

A palavra naïf, que sugere naturalidade, ingenuidade, simplicidade, inexperiência, franqueza, falta de familiaridade com o universo da arte, espontaneidade, tem essa aura emocional descritiva que reflete muito bem o espírito deste artista. No entanto, como termo técnico, origina confusões. Como Louis Aragon, poeta, romancista e ensaísta francês, podemos dizer que “é naïf considerar esta pintura naïf” (ARAGON apud BRODSKAIA, 2017, p. 8).

A Arte Naïf constitui, de fato, o marco de um estilo e de uma direção genuína na representação pictórica. Pode-se pensar nessas reflexões estilísticas como sendo um esboço de um panorama de estudo que se inicia pela dificuldade de encontrar um nome apropriado para esse estilo de arte, em que nenhum dos termos é suficientemente descritivo, na qual a denominação mais usada é Arte Primitiva, o que suscita problemas conceituais. Até meados do século XIX, o termo “primitivo” era usado para as obras de arte anteriores ao Renascimento. A partir da segunda metade, a designação era empregada também para diferenciar a sociedade europeia das culturas consideradas menos civilizadas, ou ainda para referir-se às antigas culturas egípcias, persas, indianas, bem como a outros estilos que se tornaram conhecidos por meio das exposições universais realizadas ao longo do século XIX.

No desenvolvimento da arte moderna, essencialmente antinaturalista, vários são os momentos de revalorização da arte primitiva, tanto do ponto de vista formal quanto espiritual. Ainda no século XIX, ocorre a “descoberta”, por parte dos impressionistas, das gravuras japonesas – representações livres dos códigos da pintura europeia –, o que é fundamental para o nascimento da pintura moderna. O interesse de artistas […] por manifestações ditas “primitivas” coaduna-se com o desejo de buscar padrões formais e valores humanos alternativos ao racionalismo da sociedade europeia moderna e sua cultura. Esses movimentos em direção à arte primitiva, que têm início na passagem do século XIX para XX, são de modo geral tratados como “primitivismo”. Em alguma parte de sua formação, cubismo, expressionismo, dadaísmo e surrealismo fazem sua viagem ao primitivo em busca de valores e formas primordiais na intenção de renovar a arte ocidental (ARTE Primitiva, 2020).

Ao incorporar essa grande diversidade de elementos, o termo assume uma amplitude que o torna impreciso demais como definição de um estilo. A descrição “primitivo” simplesmente não é mais exata o bastante para poder aplicar-se às obras de artistas que não tiveram uma aprendizagem ou formação artística acadêmica e convencional. Além disso, por vezes, a Arte Naïf ainda pode ser confundida com a Popular ou com a Bruta, esta última definida como expressão artística selvagem e indomável, tendo como exemplo a arte realizada por pacientes de clínicas psiquiátricas (DUBUFFET apud D’AMBROSIO, 2013).

O termo arte naïf aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação culta no campo das artes. Nesse sentido, a expressão se confunde frequentemente com arte popular, arte primitiva e art brüt, por tentar descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico. A pintura naïf se caracteriza pela ausência das técnicas usuais de representação (uso científico da perspectiva, formas convencionais de composição e de utilização das cores) e pela visão ingênua do mundo. As cores brilhantes e alegres – fora dos padrões usuais –, a simplificação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza e a presença de elementos do universo onírico são alguns dos traços considerados típicos dessa modalidade artística (ARTE Naïf, 2020).

Muitas outras expressões descritivas foram sugeridas para preencher esse vácuo. Wilhelm Uhde, historiador e colecionador, marchand e curador de arte alemão, chamou os participantes da exposição de 1928, em Paris, de Les peintres du Sacré-Coeur/os pintores do Sagrado Coração, na intenção de enfatizar a natureza pura, não contaminada, da expressão desses artistas. Dentre os vários termos propostos, determinou-se a escolha por naïf. É essa a palavra que costuma ser mais usada na edição de livros de arte e no nome de um crescente número de bienais e museus específicos desse estilo. Presume-se que o que parece apropriado no termo seja a combinação de fatores éticos e estéticos na obra dos artistas dessa vertente. Para um leitor ou espectador não sofisticado, no entanto, o termo Arte Naïf desperta de fato na mente a imagem de um artista humanista.

Ao longo das épocas, os pintores naïf têm se mostrado independentes de outros estilos de arte desde o início – essa é sua qualidade essencial. Paradoxalmente, é essa independência que determina similaridade entre eles, assim como o fato de serem autodidatas e de não aspirarem ao aprendizado formal de desenho e pintura. Outro ponto de semelhança é que tendem a adotar temáticas parecidas, valorizando a representação de temas cotidianos e manifestações culturais folclóricas, a ter mais ou menos o mesmo tipo de visão em geral, com simplificação dos elementos representados. Essa similaridade de características e temas deriva basicamente da natureza instintiva de seu processo criativo, pois quase todos os pintores e escultores naïf estão ou estiveram em alguma medida associados a um campo amador da arte.

Cabe acrescentar que a Arte Naïf não é arte ínsita (inata) termo usado nas Trienais de Bratislava[1], na Eslováquia, que valoriza a importância do conteúdo inconsciente e trata a expressão artística como um dom, uma dádiva dos deuses, excluindo a possibilidade do autodidatismo, ou seja, da construção e aquisição de um conhecimento pelo próprio pintor. (D’AMBROSIO, 2013, p. 18).

O conceito está consagrado na crítica de arte, mas sua definição ainda é imprecisa e sua aplicação não é muito consistente, pois pode ser considerada uma corrente artística com plena liberdade estética. Por estar livre das convenções acadêmicas, no entanto, não pode ser enquadrada como modernista ou popular. De acordo com D’Ambrosio (2013), entre os principais critérios de identificação da Arte Naïf estão:

• o desconhecimento ou a recusa das regras acadêmicas e/ou clássicas de composição e técnica, incluindo o uso de proporções anatomicamente corretas e perspectiva espacial tridimensional. O artista nunca frequentou uma escola formal de arte, mas descobriu por si só uma forma de expressão pessoal;

• a originalidade e espontaneidade do artista naïf tem uma linguagem que é só sua, inconfundível, diferente dos artistas folclóricos ou tradicionais indígenas e certas formas de arte popular. Ele não repete padrões fixos herdados dos ancestrais ou da coletividade;

• o caráter narrativo e figurativo, já que sua obra conta uma história, retrata uma cena, uma paisagem, um interior, um fato do cotidiano, um evento histórico ou religioso. Mesmo nas obras que são pura fantasia onírica é possível perceber uma linha de expressão narrativa;

• a preferência por cores puras e vivas, com tendência ao ornamental.

Utilizando como fonte de inspiração o universo do imaginário coletivo, a iconografia popular presente nas manifestações religiosas e nas paisagens mostra a flora, a fauna, os aspectos arquitetônicos e a gente do lugar de forma idealizada. Os naïf retratam a vida cotidiana com forte vínculo com seu existir; sua arte faz alusão ao passado e ao presente como forma de expressar a celebração da vida.

Respaldados pela liberdade estética e o fazer livre, os artistas naïf resolvem as dificuldades técnicas sem auxílio de normas artísticas preestabelecidas, concebem e produzem a sua arte livre de convenções ditadas pelo campo das Artes Visuais.

2. A arte Naïf no Brasil

No contexto da Arte Naïf no Brasil, é importante ressaltar o papel das Bienais Naïf na trajetória dos artistas nacionais.

A Bienal originou-se das mostras anuais realizadas pelo Sesc Piracicaba, no período 1986 a 1991, sempre com o propósito primordial de valorizar e divulgar essa vertente artística fortemente marcada por elementos que distinguem a Cultura Popular Brasileira.
[…]
A ligação entre arte e vida costuma ser muito forte na arte popular, sendo especialmente importante conhecer, além do objeto produzido, o próprio artista. (D’AMBROSIO, 2013, pp. 7-8).

As bienais de Arte Naïf, promovidas pelo SESC Piracicaba, além de destacarem os trabalhos de artistas, vêm discutindo o diálogo entre Arte Naïf e Cultura Popular, no âmbito das artes plásticas no Brasil, a partir da produção de textos e reflexões promovidas por curadores e júris do evento. Nesse processo, identificam-se algumas tendências da cultura popular a partir dos trabalhos escolhidos, conectando o evento com a Arte Brasileira como um todo. Outra questão debatida ao longo destas Bienais é a fronteira entre as Culturas Erudita e Popular. Em linhas gerais, pode-se dizer que a primeira provém do pensamento científico e das pesquisas acadêmicas, enquanto a segunda está identificada com o povo e a sua espontaneidade.

A cultura erudita é mais valorizada pelas diversas instituições, como a universidade por exemplo, e não deixa de ser curioso que os artistas populares, para ganhar espaço no meio acadêmico, precisam ter o aval de intelectuais que se valem de conceitos eruditos para justificar obras que, talvez, não precisassem de uma teorização. Em síntese, são os representantes da cultura erudita que pesquisam a cultura popular e lhe atribuem conceituações. (D’AMBROSIO, 2013, pp. 8-9).

No material presente nos catálogos das Bienais realizadas, incluindo os textos dos curadores e dos integrantes das comissões de premiação, encontramos os argumentos que diferenciam a Arte Naïf. Contudo, chamamos atenção para a necessidade de se conhecer a trajetória e o ateliê do artista, para melhor compreendê-lo, como afirma D’Ambrosio (2013) em sua pesquisa:

Percorrer o mundo dos Naïfs é um grande e fascinante desafio. Mergulhar na arte de origem popular e encontrar talentos obriga a conhecer o maior número possível de artistas, identificando características que tornam alguns desses pintores expoentes do que há de artisticamente melhor, e não somente dando-lhes destaque como Naïfs, mas colocando-os entre os principais nomes da arte universal, independentemente de categorias, estilos, nomenclaturas e temáticas, que podem ser a prevalência do onírico e do imaginário, da crítica social, da violência urbana ou da valorização idílica da zona rural e de suas atividades econômicas e sociais. (p. 135).

Destacam-se em sua pesquisa alguns artistas naïf no Brasil, entre eles: Gilvan Cabral, Dalvan da Silva Filho, Mestre Vitalino, Odilon Nogueira, Wilma Ramos, João Generoso e Waldomiro de Deus.

3. O Naïf e a religião

A vinculação entre Arte Naïf e religião é inegável, já que muitas manifestações religiosas têm essa vertente de expressão artística, não apenas ingênua, mas autodidata, com atuação de pessoas comuns, artesãos que professam e executam a sua arte consoante às encomendas que recebem. Assim produzem suas imagens de virgens, santos e orixás, já que, quando falamos de religião, não nos referimos somente ao cristianismo. Na busca por demonstrar vinculações, citamos a igreja de São José (Imagens 1-3) em Iracoubo, Guiana Francesa, listada como monumento histórico por ter em seu interior um afresco, cujo estilo remete à arte ingênua. Os temas iconográficos usados são provenientes de imaginário popular, e muitos desconhecem a história incomum dessa construção que data do século XIX.

A história do monumento, de acordo com CALMONT (2016), inicia-se no ano de 1887, quando o Padre Raffray empreendeu a construção de uma nova igreja, que levou seis anos para ser concluída. Devido aos fundos insuficientes do clero, os habitantes mobilizaram-se, oferecendo doações. Todo o trabalho no seu interior, como teto, coro, nave, mesas de cabeceira e pilares, foi realizado no final do século XIX pelo condenado Pierre Huguet. Como era de se esperar em uma igreja construída com doações do povo, o seu acabamento é bem simples, com materiais menos nobres, sendo toda feita de madeira. No entanto, há uma riqueza em seu interior, composta pela pintura que cobre toda a nave, de uma simplicidade ornamental, com imagens de anjos, flores e guirlandas. A nave tem o fundo azul claro e, reveladas sobre este fundo, as cores da natureza. No teto há um céu, com constelação, e no seu entorno uma coroa de flores com a imagem do Espírito Santo, além da pintura de um Cristo crucificado, envolto por anjos e flores. São José, o santo patrono da Igreja, se encontra centralizado na parte superior atrás do altar. Toda essa descrição é compatível com a característica própria do naïf.

Consideramos essa igreja um exemplo de como as fronteiras entre o naïf, a religiosidade e a Arte Sacra nem sempre são muito claras. Diante de tantas manifestações religiosas, retratadas por artistas naïf, seja em pintura ou escultura, essa arte poderia sim ser não apenas religiosa, mas sacra, dado que tem uma beleza divina, transfigurada pelo olhar de fé e total entrega do artista na sua execução. Esse artista transforma sua arte em real visão do que há de mais nobre: a Beleza ingênua da alma.

Por comparativo, a Arte Naïf é uma arte tão singela e simbólica quanto aquela executada pelos cristãos primitivos, com um estilo predominante desde a arte paleocristã até o período românico. “A arte românica corresponde a uma síntese de castas; e é essencialmente uma arte sacerdotal, compreendendo, entretanto, um aspecto popular, satisfaz o espírito contemplativo e também atende à fruição da alma mais simples” (TOMMASO, 2017, p. 69).

A Arte Naïf é uma arte tão singela quanto a dos cristãos primitivos. No contexto da representação cristã, vai ao encontro do resgaste de uma arte mais simbólica e não naturalista, como a dos primeiros cristãos, conforme a premissa do Concílio Ecumênico Vaticano II, de acordo com TOMMASO (2018):

Pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, somos convidados a nos inspirar na arte e na arquitetura dos cristãos do Primeiro Milênio. Sob a premissa de que o simbolismo do templo cristão repousa na analogia que há entre o templo e o Corpo de Cristo, esta comunicação tem como objetivo entender como os cristãos, a partir do século IV, após o Edito de Milão em 313, conceberam a arquitetura e a arte nas paredes de seus templos.[2]

As pinturas da igreja remetem a representações do início da arte cristã, uma arte sacerdotal, contudo de aspecto popular.

Imagem 1 – Igreja de São José, vista do altar, Iracoubo, Guiana Francesa, séc. XIX
Imagens 2 e 3 – Detalhes de São José e coroa de flores (2) e do teto com Cristo crucificado (3), Pierre Huguet, igreja de São José, Iracoubo, Guiana Francesa, séc. XIX


4. A arte Naïf de Iranildes Bufalo

A primeira obra que apresento foi feita para a Bienal de Arte Naïf de Socorro/São Paulo, em 2017. “Totem Cor-Ação” é uma pintura sobre porcelana e mostra os “Índios Ribeirinhos do Pará”. Nesta obra, mostro o cotidiano dos índios paraenses, jovens e crianças, refletindo assim a simplicidade do povo originário e a comunhão com a natureza. A paleta de cores é enxuta e apresenta tons pastéis terrosos. O prato é quadrado, medindo 27,5 x 27,5 cm.

Imagem 4 – Totem Cor-Ação, Iranildes Búfalo, 2017


A segunda obra foi selecionada para a Bienal Internacional Naïf do Brasil 2020, SESC Piracicaba. Um busto em homenagem a Chiquinha Gonzaga, “Sobre Partituras”, onde se pode notar a cultura popular brasileira em meu trabalho. Ele foi modelado em três tons de argila com cozedura de 1100°C.

Imagem 5 – Sobre Partituras, Iranildes Búfalo, 2020


E a terceira obra foi escolhida entre 200 artistas do Brasil para um projeto internacional de exposição virtual com tema “pandemia”. Trata-se de “Um Olhar Naïf nos tempos de Covid-19”, uma placa cerâmica com baixo relevo sem cozedura, policromada com pigmentos naturais, igualmente sem cozedura: “Esperança de um novo amanhã”, medindo 13 cm x 13 cm x 3 cm.

Imagem 6 – Um Olhar Naïf nos tempos de Covid-19, Iranildes Búfalo, 2020


Na primeira obra, “Índios Ribeirinhos do Pará”, encontramos a simplicidade de um povo que convive em total comunhão com a natureza. Suas crianças são felizes, tomando um banho no igarapé, pintando sua pele ou, simplesmente, deitando em uma rede, desfrutando e respeitando o que o seu deus Tupã lhes dá. Já na segunda, “Chiquinha Gonzaga sobre partituras”, estamos diante de um gesto de gratidão por uma mulher à frente de seu tempo, que fomentou a cultura em uma época em que a mulher não tinha voz, era submissa às ordens masculinas. Sua trajetória nos faz pensar que, mesmo sendo culta, a pessoa pode também ser popular, ou seja, a erudição não é, necessariamente, um afastamento do popular – e nada mais popular que homenageá-la em uma Bienal Naïf.

E, na última obra apresentada, “Esperança de um novo amanhã”, composta por uma singela plaquinha de terracota, mostro a pureza dos sentimentos de esperança e fé; nada pensei na hora de executá-la, apenas segui minha fé, como os primeiros artistas cristãos, provavelmente, o fariam.

Todas as vezes que crio uma nova obra, entro em comunhão com a pureza do meu coração; o barro passa por minhas mãos transformando-se em arte, em veículo de expressão de amor e agradecimento pelo dom que me foi dado por Deus, meu Mestre e Senhor. É como um gesto litúrgico, o fazer artístico como uma missa viva, um trabalho abençoado.

5. Considerações finais

O artista naïf traz pureza à sua interpretação e o faz em cores vibrantes, tornando-a uma obra simples e bela, pois a simplicidade faz da cena uma leitura poética leve e tranquila, mostrando que a beleza está na alma do artista e que sua arte é uma extensão da alma. Desta forma, concluímos que a Arte Naïf tem uma beleza pura, seja retratando o cotidiano, as comemorações religiosas, cenas bucólicas ou mesmo os conflitos urbanos. Assim como a arte românica, a Arte Naïf é impregnada de uma mistura da fé e do cotidiano das comunidades onde esses artistas vivem. “Os pórticos e capitéis das igrejas românicas são ‘Bíblias de pedra’ com uma expressão desconcertante e ‘infantil’, mas fruto de um universo impregnado de cristianismo, onde o religioso e o profano estão estreitamente misturados” (TOMMASO, 2017, p. 70).

Mestre Vitalino representava em sua arte a saga de um povo nordestino, que mesmo com todo sofrimento mantém a fé. Esse artista fazia a sua arte não com pesar, mas com a sua pureza de alma. O artista genuinamente naïf, às vezes, mal sabe escrever o seu próprio nome, porém, sua caligrafia artística descreve sua realidade cotidiana e religiosa. Essa característica faz dele ímpar, porque sua pureza em criar sua arte, mesmo sem saber ler, é um dom do Espírito Santo. Com as bienais, ficou evidente a diversidade artística dessa vertente. Embora haja pintores naïf que já não podem ser considerados autodidatas – alguns frequentam escolas de arte e universidades –, ainda existem aqueles que mal sabem ler e escrever.

D’Ambrosio (2013) relata muito bem aquilo que é necessário para conhecer um artista naïf: é preciso conhecer sua trajetória e seu ateliê. O autor classifica o artista naïf em cores, não de sua arte, mas da sua sensibilidade poética de retratar o que se propõe, seja qual for o tema de sua obra.

Sou uma artista que aprecia cores mais puras, segundo a simplicidade das paneleiras que, sentadas no chão, desenvolvem sua arte herdada de suas mães e avós. Procuro então uma pureza nas recordações de minha infância para desenvolver meus trabalhos; processo que pode parecer simples, mas não é. Como disse Pablo Picasso, “Pintar como os pintores do renascimento me levou alguns anos. Pintar como os pequenos me levou toda a vida”. Mas não me considero uma artista naïf pura; sou uma artista híbrida: navego por todas as ondas das artes, apesar de ser autodidata com a ajuda do dom a mim dado por Deus-Espírito Santo.

Amo a arte e em especial a Arte Naïf. Essa vertente me fascina pela pureza através da qual o artista se expressa: com cores vibrantes que celebram a vida, que realizam com a leveza. Não tenho preferência por ou influência de algum artista naïf, pois cada um é único, e sua obra expressa o que vem de seu íntimo no momento de criação.

Referências bibliográficas

ARTE Primitiva. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3183/arte-primitiva. Acesso em: 10 de Ago. 2020. Verbete da Enciclopédia.

ARTE Naïf. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo5357/arte-naif. Acesso em: 10 de Ago. 2020. Verbete da Enciclopédia.

ARAGON, BRODSKAIA, Nathalia. Arte naïf, Coleção Folha, volume 20, 2017.

BRODSKAÏA, Nathalia; RAU, Viroel. Arte Naïf. Nova York: Pakstone Press Internacional, 2017.

CALMONT, Regine. Eglise Saint-Joseph. Ville D’ Iracoubo. 16 de maio de 2016. Disponível em: http://www.iracoubo.fr/patrimoine/eglise-saint-joseph/ . Acesso em: 31 de julho de 2020.

D’AMBROSIO, Oscar Alejandro Fabian. Um mergulho no Brasil Naïf: as Bienais Naïf do Brasil do SESC Piracicaba: 1992 a 2010. Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2013. Disponível em: http://tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2068/1/Oscar%20Alejandro%20Fabian%20DAmbrosio.pdf

STRICKLAND, Carol. Arte comentada da Pré-História ao Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

TOMMASO, Wilma Steagall De Tommaso. O Cristo Pantocrator. Da origem às igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus, 2017.

Catálogo da bienal internacional de Arte Naïf. Totem Cor-Acão. 1 ed. Socorro, São Paulo. ITC, 2017. https://binaif.org.br/binaif-2017/

Notas

[1] Circuito artístico internacional de Arte Naïf pelo leste europeu.

[2] Disponível em: https://wilmatommaso.com.br/wp-content/uploads/2021/01/034_A_Arte_Como_Expressao_Do_Sagrado.pdf

Sobre o autor

Iranildes Melo Rolim Bufalo

Artista e ceramista autodidata, com formação técnica em Conservação e Restauro. Catalogada na Revista de Artes Domani (2006 e 2008) de São Paulo. Participação na Bienal Internacional Naïf em 2017 (Totem Cor-Ação) Cidade de Socorro, SP. Selecionada para a Bienal Internacional Naïf do Brasil 2020, SESC Piracicaba, SP. Participação na exposição virtual “Um Olhar Naïf em tempos de covid-19”, 2020.