Palestra proferida em outubro de 2015, por ocasião do Encontro da Vida Consagrada, na Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe em Madrid, Espanha.
Tradução: Junia Rocha – Artista plástica licenciada em Educação Artística (Artes Plásticas) pela Escola Guignard – UEMG e integrante do Grupo de Pesquisa “A Imagem de Deus: Religião, História e Arte”, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.
Uma pequena introdução. É a primeira vez na minha vida que faço uma conferência lendo. Nunca, até agora! E, sobretudo, em uma língua que não falo [espanhol]. Portanto, será óbvio que vocês vão dormir… será grave se eu dormir também. Então.
Depois de não poucos anos acompanhando diferentes experiências pastorais com muitas congregações religiosas, tanto masculinas como femininas, tenho elaborado uma reflexão que hoje gostaria de compartilhar com vocês, ao menos em alguns pontos.
Primeiro ponto. A beleza atrai, envolve e enamora. Podemos dizer que a vida religiosa hoje, certamente não é bela, porque não atrai, mas lamenta a falta de vocações. Em nossas comunidades, deve haver algo que não somente não atrai, mas repele, que dá medo. Eu conheci muitos jovens, rapazes e moças, que ficam horrorizados ao pensar que podem ser chamados à vida religiosa. E, embora os consagrados, tanto mulheres quanto homens, estamos radicalmente comprometidos com o homem de hoje, trabalhando muitíssimo, usando de todos os meios modernos, em tudo isso, a beleza não emerge. Nós somos ótimos, “pessoas boas”, mas não somos belos, não fascinamos. As boas pessoas são aplaudidas, porém não se vai atrás delas.
Segundo ponto. Alguma coisa perdemos ao longo do caminho. Havia algo que não nos pertencia e que fizemos de nosso, porque para os cristãos dos primeiros séculos e durante todo o Primeiro Milênio, a beleza era algo importante. Além disso, os cristãos entraram no mundo cultural tendo uma visão nova e original da beleza. “Belo” é o que é multiestrato. A beleza é a unidade orgânica dos diferentes. Além disso, a beleza é a unidade dos diferentes estratos da realidade. A base da beleza é o próprio Cristo. É sua exclamação que Ele nos transmitiu no Evangelho de João: “Quem me viu, viu o Pai.” (cf. Jo 14,9), “Quem me vê, vê Aquele que me enviou.” (cf. Jo 12,45). Essa unidade que une diversas realidades em um organismo não é uma ideia, não é a força de alguma energia, nenhuma lei, nenhum sistema. Essa unidade não é uma ideia, mas é uma Pessoa, uma Pessoa com seu amor. E esta unidade levada a cabo pelo amor, se contempla no rosto desta Pessoa. Olhando este rosto, somos atraídos, envolvidos, unidos. A beleza nos faz unir aquele que, dentro de uma realidade, se desdobra como uma realidade mais profunda, e é mais profunda porque une diversas realidades. Contempla-se o rosto de Cristo, verdadeiro homem, porém está inserido em união com uma Pessoa que é divina, é o Filho de Deus, rosto do verdadeiro homem em união com uma Pessoa divina. É aqui a beleza: dentro de uma realidade, descobrir outra. Assim é também o sacramento, assim é a água, assim é o óleo, assim é o vinho, assim é o pão, assim é o batizado, assim é o marido, assim a mulher, assim a Igreja. Tudo o que é nossa Igreja é multiestrato.
Terceiro ponto. A outra palavra para beleza, que os cristãos amavam, era o símbolo. O símbolo era a mesma coisa: uma unidade orgânica de mundos distintos, de tempos diferentes, do humano e do divino, do histórico e do escatológico, uma unidade orgânica realizada em uma Pessoa, em Jesus Cristo. Pavel Florenskij, o grande gênio e mártir russo, dizia que “o sentido da vida espiritual, de cada ato cristão, é chegar a ser belo”. Ou seja, ser um símbolo que dentro da história abre uma janela a Eschaton, no culminar de tudo em Cristo. Para o mesmo Pavel Florenskij, o testemunho é uma realidade de beleza, porque é simbólico. Assim é como descrito no Evangelho de João, o testemunho consiste em que nos gestos, nas obras, nas palavras, emerge o Outro, o Senhor. O testemunho como o eixo da missão da Igreja é viver nossa humanidade como teofania, como revelação da vida de Cristo, da vida do Filho, ou seja, lugar onde Deus ama nossos contemporâneos, na nossa humanidade. E os outros encontram em nosso trabalho, o rosto do Salvador e Senhor. Por isso, a suprema beleza é Cristo Pascal, porque é a humanidade vivida como uma oferta de si, como suprema teofania. O mesmo Pavel Florenskij sintetiza a experiência cristã da beleza na seguinte conclusão: “A verdade revelada é o Amor — Cristo, Filho — e o Amor realizado é a beleza”. A suprema beleza é reservada à Igreja, à comunhão, às pessoas que vivem uma vida que é amor e que se realiza ao modo de Cristo, um modo pascal. Sobre cada etapa da vida cristã há uma epiclesis, de modo que continuamente o cristão vive esta unidade com a vida de Cristo e com sua realização. No que acontece sobre o altar, na eucaristia, se contempla na verdade, a comunidade que a celebra, porque o que verdadeiramente somos é apenas o que somos na eucaristia. As paredes da igreja “absorvem” o que acontece no altar, na comunidade, imprimem este evento, o absorvem. Por isso, a arquitetura e a arte nas paredes se tornam um autorretrato. As paredes da igreja são a tela na qual a Igreja pinta seu autorretrato. É o nosso autorretrato. Assim nasce a arte dos cristãos: em uma unidade orgânica com a liturgia e com a vida nova, a vida divino-humana, da humanidade enxertada no Corpo de Cristo.
Quarto ponto. Quais foram as encruzilhadas perigosas? A entrada no Império de Constantino, no século IV. A princípio, parecia um acontecimento que daria a possibilidade real de uma integração universal em Cristo, tecendo juntas todas as dimensões da vida humana em um único organismo divino-humano. Porém, não foi assim. Muitas pessoas entraram na Igreja e não foi possível transmitir a experiência de uma vida nova, da vida como Corpo Eucarístico. E para os padres da Igreja, a experiência coincidia com a vida como comunhão. A experiência consistia em despertar depois da morte, nas águas batismais, onde morre o “indivíduo” e nasce a “pessoa”, morre o homem velho e nasce o homem novo, morre uma vida unida ao sangue dos pais e é ressuscitada uma vida nova, unida ao Sangue de Cristo.
No Batismo, morre o “eu” com sua ânsia de auto-afirmação e ressuscita o irmão dos irmãos, membro do Corpo de Cristo. Morre o “eu” como mera expressão da natureza humana ferida, e ressuscita a “pessoa”, que com o amor recebido de Deus, ama através de sua natureza humana, transfigurando assim a própria humanidade. Morre o “indivíduo” como o “eu”, produto da natureza humana e ressuscita a “pessoa” como relacionalidade recebida na participação de Deus. O “indivíduo” é um ser isolado, a “pessoa” é um “eu” constituído pelas relações. A “pessoa” está constituída pela vida recebida de Deus, que é a comunhão, que é o amor. Não somos primeiro “indivíduos” que depois amamos, mas nós recebemos uma vida que é amor e que procura realizar-se em nós. Não sou mais “eu” primeiro e depois amo.
A experiência é a Igreja. Para os Padres é totalmente diferente do que para os modernos. Para os modernos a experiência está ligada ao sujeito, para os Padres é a Igreja. A experiência é Tu est ergo sum, “Tu és, logo sou”. A experiência foi descobrir-se entrelaçado em um organismo que é o Corpo de Cristo, um organismo de muitas moradas, onde pela primeira vez se descobre uma nova existência no outro: “Como Eu estou no Pai e o Pai em Mim, vós em Mim e Eu em vós” (cf. Jo 14,20). Porém, as multidões eram demasiadas e essa iniciação mistagógica era praticamente impossível. Queria-se encontrar um pensamento que já tivesse sido realizado no mundo clássico, um pensamento que antes de tudo fosse conciso, preciso, claro, com o qual o ideal da vida cristã poderia ser descrito, reduzindo-o a uma doutrina. Procurou-se descrever uma maneira tão ideal, que fosse universal. O indivíduo, de todas as formas, se refere a esse ideal, se refaz de acordo com esse ideal, procura imitá-lo e conformar-se a ele. Por isso, a explicação da doutrina se tornava ipso facto também em normativa, de modo que cada vez mais foi dada ênfase à uma abordagem jurídica e ético-moral. Passou-se da experiência vital, à doutrina e da fé, à religião.
Como testemunha a pintura do afresco nas Salas de Rafael, no Vaticano, precisamente na de Constantino, intitulada “O triunfo da religião cristã”, pintada por Laureti (cf. imagem 1.1).
Imagem 1.1 – Tommaso Laureti. O triunfo da religião cristã. Afresco. 1585. Museus Vaticanos
Ao longo dos séculos, produziu-se uma verdadeira e estrita substituição de uma religião por outra. O cristianismo como fé entra no Império e substitui uma religião.Vemos aqui um deus pagão, jogado no chão, quebrado e, sobre o pedestal onde estava, colocamos um outro deus. Me desculpe, mas este é um gravíssimo erro. O cristianismo não é uma religião. Cristo nunca fundou uma religião. Ele veio para estender sobre nós uma nova existência do humano. Mas nós começamos a compreender o cristianismo como uma religião e começamos a explicá-lo com pensamento humano.
Nas mesmas Salas de Rafael temos um triunfo da criatividade humana (cf. imagem 1.2).
Imagem 1.2 – Rafael Sanzio. Escola de Atenas. Afresco. 1511. Museus Vaticanos
No “coração”, Platão e Aristóteles: Platão, com a mão indicando para cima e Aristóteles com a mão indicando para baixo. Todo o grande pensamento clássico: ou através das ideias ao mundo ou através do mundo às ideias. Diante deste afresco, está a “Disputa Eucarística” (cf. imagem 1.3).
Imagem 1.3 – Rafael Sanzio. Disputa Eucarística. Afresco. 1511. Museus Vaticanos
A eucaristia não está mais na liturgia, é “arrancada” da Igreja, tornou-se um objeto de culto e objeto de uma disputa filosófica e teológica. À direita, estão os teólogos agostinianos, que seguem Platão, que tem a mão para cima. À esquerda, vemos a escola tomista, que segue Aristóteles, que tem a mão para baixo. Aqui algo muito grave aconteceu, porque os mistérios de nossa fé começam a ser explicados em categorias humanas, quando deveria ser exatamente o oposto, isto é, que a vida nova produza uma inteligência nova, uma cultura nova… e, em vez disso, voltamos para trás.
A religião, nesse sentido, é uma realidade inata à natureza humana, assim como outras existências do indivíduo, cujo objetivo é salvar-se a si mesmo. Quando o Império assume o cristianismo, exige dele uma institucionalização como se fosse uma religião e, de repente, no coração do cristianismo, já não está a vida como comunhão, mas como indivíduo que se corrige, que se aperfeiçoa de acordo com o ideal proposto e ensinado. Passamos da fé à religião, porque o Império institucionalizou a Igreja e a fé como um fato religioso. Essa é a armadilha pela qual começou a descristianização e a secularização. A História da Arte nos testemunha magistralmente esses passos que se sucederam.
Na Grécia clássica, isto não era uma mulher concreta; era uma perfeição, um ideal feminino. Não era individual, era universal. Nós, cristãos, adotamos esse modo de pensar para explicar o ideal da vida cristã à enorme multidão que entrou na Igreja, durante o Império. O indivíduo deveria confrontar-se com este ideal (cf. imagem 1.4).
Imagem 1.4 – Vênus de Milo. Século II a.C. Museu do Louvre. Paris, França
Imagem 1.5 – Leonardo da Vinci. Mona Lisa ou “La Gioconda”. 1503-1519. Museu do Louvre, Paris
Imagem 1.6 – Domenico Ghirlandaio. Retrato de uma senhora. 1490. Clark Art Institute. Williamstown, EUA
Imagem 1.7 – Tiziano Vecellio. Vênus de Urbino (detalhe). 1538. Galeria dos Ofícios. Florença, Itália
Enquanto a partir da fé, a pessoa se expressa e realiza sua comunhão em sua natureza humana e por meio dela, transfigurando-a com amor e tudo feito à maneira do Tríduo Pascal, de forma que de nenhum modo se trata de formas perfeitas. Nesta dinâmica, temos dedicado os esforços de nossa história. Atenção! Se lermos a homilética dos últimos quatro ou cinco séculos e os textos da formação sacerdotal e religiosa, todos estão praticamente moldados de acordo com esse modelo de aperfeiçoamento de si mesmo; o indivíduo trabalha sobre si mesmo, tratanto de corresponder com o ideal que se destaca em cada ocasião, colocando-o à frente. Toda a espiritualidade torna-se perfeição do indivíduo.
Quinto ponto. O que realmente aconteceu quando o indivíduo foi colocado no epicentro? Perdeu-se uma verdadeira teologia trinitária. Esta é a chave de toda a tragédia do nosso tempo.Ao perder a verdadeira teologia trinitária, tudo foi fragmentado porque se deu prioridade a uma abordagem filosófico-racional e, sobretudo, porque se perdeu a vida no Espírito Santo, a vida espiritual; perdeu-se a vida como caminho de transfiguração. A transfiguração é o índice da verdade espiritual, porque é uma realidade de sinergia. Cristo foi transfigurado pelo Pai, enquanto o indivíduo busca realizar-se, trata de fazer-se, de demonstrar-se, e Deus deveria ajudar-lhe como um assistente. Perdeu-se a verdadeira visão de sinergia e de transfiguração. Tanto é assim que desaparecem as igrejas dedicadas a este mistério e desaparece como tema de arte nas igrejas. É dada toda a importância ao bem e ao verdadeiro, o belo caminha por conta própria. Enquanto, como nos adverte o grande Soloviov, “a verdade que não se comunica como beleza é uma ideologia que esmaga as pessoas e o bem que não se realiza como beleza, se torna em uma ditadura do bem, um fanatismo moralista, que é mal”. A beleza é a carne da verdade e do bem. O “indivíduo”, portanto, nunca poderá ser nem belo nem símbolo porque é monoestrato, apenas se revela a si mesmo, ou seja, o “eu” que se auto-afirma com a perfeição de suas formas. Não pode fazer surgir o Outro, porque lhe falta a vida como comunhão. Pode ser perfeito, mas não filho de Deus. A relação não lhe é constitutiva, mas um acidente. Por esse motivo, o indivíduo não pode ser belo no sentido eclesial. Ou seja, que dentro de si, seus gestos, suas obras não podem fazer emergir a comunhão, porque a comunhão é uma realidade que não se conquista, não se alcança, não está na posse do homem. A comunhão em sentido estrito teológico é a vida de Deus, e esta nos é doada, deve ser acolhida. O indivíduo, acima de tudo, é, existe, se auto-afirma e depois se empenha em viver diversos valores religiosos e até busca empenhar-se pela comunidade, pensando que a comunhão consiste na vida comunitária, um erro fundamental! O pecado reduz o homem ao “indivíduo” (Christos Yannaras, Zizioulas, Berdiaev, Evdokimov). O indivíduo não está capacitado para a comunhão, porque simplesmente não a tem, não participa na vida que é comunhão e, por isso, não pode viver a comunidade como realização do dom, mas como realização de si mesmo. Por isso, para ele, isto é sempre um problema. Os trabalhos realizados pelos indivíduos, mesmo que convivam e sejam realizados juntos, não podem fazer emergir o Outro, mas apenas os próprios indivíduos e ao máximo fazer ver o quão geniais e ótimos são. Vão muito bem, dentro da institucionalização religiosa; levam, portanto, uma função paraimperial, paraestatal, mas não teofânica, não fazem surgir a comunhão porque esta vida de comunhão o “indivíduo” não a tem, e isto é revelado com a crise da vida religiosa. Procurar que o “indivíduo” crie “comunidade” é como dizer para “sentar-se no canto de uma sala redonda”. Por isto entrou em crise tudo o que é comunhonal: casamento, vida religiosa.
Com o passar do tempo isso também nos aconteceu: perdeu-se o verdadeiro sentido da Igreja, que é a revelação de uma vida nova, como participação na vida divina, que é comunhão. A Igreja não pode ser uma sociedade perfeita, não pode ser apenas uma sociedade perfeita, com indivíduos perfeitos, porque ao mundo não interessa nossa perfeição, senão a revelação de uma vida nova. Em um tempo em que o mundo afundou em uma crise muito grave, não temos praticamente uma proposta convincente que possa atrair a atenção dos nossos contemporâneos, porque a crise que se estende no mundo é a mesma, é a que também permeia a Igreja, ou seja, o individualismo decaído em um subjetivismo exasperado. Também nós nos esforçamos para executar tantas metodologias das ciências modernas, imitando assim o mundo e perdendo nossa novidade, que não está nessas coisas, mas na própria vida, em uma nova existência da humanidade. Nossas reivindicações à ética, à moral, aos valores fazem simplesmente constatar nossa paupérrima proposta de vida.
Sexto ponto. A Revelação e a Dogmática nos dizem que a comunhão do Pai e do Filho é a Pessoa do Espírito Santo. O Espírito Santo hipostatisa a vida divina como comunhão. Em Pentecostes, esta vida hipostatisada pelo Espírito Santo como comunhão, se estende sobre os homens. No Batismo, o mesmo Espírito Santo faz-nos participar da vida divina, que é comunhão, constituindo-nos como Corpo de Cristo. É necessário deixar de pensar definitivamente que o “indivíduo” tem acesso à vida divina. O “indivíduo” não tem acesso à vida divina. Quando o “indivíduo” participa da vida divina pelo Espírito Santo, ocorre sua morte. Ele morre como “indivíduo” e ressuscita como “pessoa” constituída pelas relações, pela comunhão. A passagem do “indivíduo” para a “comunhão” é o Batismo. Estes são os “Pentecostes pessoais” que constituem o homem, outorgando-lhe a vida com a qual ele é enxertado em um organismo do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Portanto, para a Igreja, o eixo principal de sua obra não é a redenção, mas a criatividade dos redimidos, enquanto que, para a redenção, o eixo central é o Filho.
Agora, gostaria apenas de mencionar como é curioso que, “escorregando” e nos desviando da fé à religião, colocando no centro o “indivíduo”, nos trancamos na dinâmica “pecado-redenção” (por isso somos cristocêntricos e não sabemos onde colocar o Espírito Santo). Temos perdido totalmente a distinção da nossa pastoral entre iniciação cristã — caminho da redenção — e a arte da vida do cristão redimido, adulto, que é criatividade. No entanto, existe a convicção de que a ascese é espiritualmente mais importante que a criatividade, erro! Alguém está convencido de que, com a ascese e com a devoção, se adquirem mais graças que com um empenho criativo. Ainda nos movemos mais no campo do dever, das leis, do que na liberdade em Cristo. Nossa educação e formação não começam com a vida nova em Cristo e, por conseguinte, sendo criaturas novas, mas somente com os dez mandamentos. Também é curioso ver como nos últimos séculos escrevemos tantos tratados sobre a Igreja, algo certamente estranho, porque justamente esses séculos revelam o grande vazio da teologia do Espírito Santo, que é o artífice da Igreja, é a chave de qualquer argumento teológico. Escrevemos tantos textos para provar a existência de Deus, esquecendo que, para os cristãos, a existência de Deus vem evidenciada pela nova existência que vivem as mulheres e os homens da Igreja. A Igreja como vida de um no outro, como a humanidade vivida como comunhão: este é o argumento contra o qual não há objeções, seja em relação à Igreja, seja em relação à existência de Deus. Visto que a Igreja é precisamente a participação com o modo de existir e com a vida de Deus. Perguntemo-nos honestamente: como é possível que, após séculos em que floresceram tantas obras nossas, deixemos em “nossas costas” uma secularização tão violenta e uma rejeição tão enfurecida a tudo o que é da Igreja?
Para a conclusão gostaria de mostrar algumas imagens que nos ajudam a entender que estamos diante de uma grande primavera. Eis a primavera! É a deusa-mãe terra!
Gostaria de concluir fazendo um pequeno discurso sobre onde estamos. Os grandes teólogos do início do século XX, que estudaram a teologia da cultura (Pavel Florenskij, Berdiaev, Romano Guardini, de Lubac, Congar), o que eles entenderam? Que as épocas culturais se sucedem com uma lógica precisa e que, quando passa uma época cultural, a nova não aceita nada da precedente, mas parte com uma oposição e afirma uma outra coisa. As épocas se sucedem não uma após a outra, mas praticamente uma se opõe à outra. Por exemplo, temos um ritmo, uma época orgânica, onde o primado é a vida, o primado é o símbolo, porque a vida se compreende lentamente, sempre mais se aprofunda, de modo que a linguagem é simbólica, poética, artística, de culto. Em seguida, quando termina esta época se segue uma nova, que não aceita nada desta, a chamamos crítica. O primado é a ideia, o primado é a razão, o primado é a estrutura e a elaboração intelectual. Até mesmo chega-se tão longe, que se separa da vida, se concentra na elaboração intelectual e esta deveria, em seguida, tornar-se a direção da vida, a vida deve seguir as ideias. Portanto, desenvolve-se a lei, a política, a ciência, a indústria, técnica. Quando uma época crítica termina, a nova que virá não tomará nada desta, mas tomará inspiração na anterior, na precedente, a orgânica, e irá ignorar tudo o que era a época crítica. Quando terminar a nova época orgânica, surgirá uma nova época crítica e, deste modo, se sucedem. O momento mais crítico é a passagem. A antiga não é mais capaz de se manter e a nova ainda não despontou totalmente. Pavel Florenskij entende uma grande coisa: que essas épocas se sucedem, como diz o Salmo 19: “A noite transmite a notícia a noite…”. Que significa? Que o dia não transmite sua mensagem à noite, mas que a ignora e transmite ao dia seguinte, e a noite não passa ao dia, mas à noite seguinte. Isso significa que, o orgânico envia ao orgânico, o orgânico é sempre inspirado pelo orgânico, o crítico é inspirado pelo crítico.
Vamos ver um exemplo. Este é um exemplo de Neolítico, da cultura egeia, da cultura simbólica, o primado é a vida, a poesia (cf. imagem 1.8).
Imagem 1.8 – Estatueta. Ggantija Temples. Gozo, Malta
Termina e chega a época clássica, a época crítica (cf. imagem 1.4). Esta mulher era simbólica (cf. imagem 1.8) e esta [outra] é uma forma de uma ideia (cf. imagem 1.4), do domínio da ideia, do crítico, da elaboração intelectual. Termina esta época crítica e qual época virá? Crítica ou orgânica? “Orgânica.” Orgânica! Viva a Espanha! A nova época orgânica coincide com o cristianismo, em nossa “bacia” cultural. E vejam, a arte dos cristãos é orgânica (cf. imagem 1.9), não toma nada do clássico, o ignora totalmente seja na arquitetura, seja na arte, porque o cristianismo é orgânico.
Imagem 1.9 – Theotokos. Séculos VI-VII. Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai, Egito
Esta é uma mulher simbólica (cf. imagem 1.8), não é uma mulher que é a forma de uma ideia, mas dentro se descobre sempre algo novo, mais profundo. O quarto século é o mais importante. Basílio, o Grande, um homem de grande teologia da cultura, entende que o Cristianismo é sempre orgânico, é sempre o primado da vida, sempre o primado do símbolo, mas a nova vida produz a nova inteligência. Por isso há um grande equilíbrio entre a vida e a inteligência, contudo uma vida nova é inteligência nova. Essa época termina e chega nova época. Onde se inspira? Inspira-se aqui (cf. imagem 1.10).
Imagem 1.10 – Michelângelo Buonarroti. David. 1504. Galeria da Academia de Belas Artes de Florença, Itália
Chega o Renascimento, época crítica, época da razão, do intelecto, da elaboração de ideias, da doutrina, das instituições, da política, da ciência, tudo isto que passamos e essa é a época que mais teve influência sobre a Igreja. Porque também nós começamos a pensar que primeiro é a doutrina e depois a práxis. Primeiro ensinar e depois fazer. Todos aceitamos esse princípio e isso é problemático. No centro estão o indivíduo e a doutrina. Esta época não existe mais. Dizem que terminou no início do século XX. O Vaticano II nos preparou para a nova época que será orgânica e que se inspirará na época anterior, a do Primeiro Milênio. Nós não entendemos isso. Ainda pensamos que devemos ensinar, que devemos explicar, e que depois as pessoas vão viver assim.
Olhem um último exemplo: Irlanda. Um país católico, fez um referendo, venceu a vida, a vida, porque hoje já estamos na época orgânica. Venceu a vida. Confusão, uma vida pagã, não há mais homens, não há mais mulheres, uma confusão, mas esta é a vida. E a época nova e os séculos futuros serão orgânicos. E estamos tão atrasados, que ainda agora vamos discutir para criar leis e criar doutrinas, pensando que depois a vida seguirá essas coisas. Isso é típico desta época que já acabou. Na época nova, as leis e ideias seguirão a vida.
Nunca houve, nos últimos séculos, um momento tão precioso para a Igreja como hoje, para revelar a vida nova. O mundo espera o testemunho de uma novidade da vida, que produzirá uma nova cultura, uma nova inteligência, novas leis. E se nós continuarmos atrasados, prolongando a modernidade no nosso tempo, estaremos submersos em uma vida pagã, não seremos capazes de revelar que a vida é a luz dos homens (cf. Jo 1,4).
Por isto, eu penso que é a hora da vida religiosa, mas não mais a paraestatal, não mais a funcional, mas a da vida nova.
Bibliografia
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zUsjO_FeseU
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Imagem 1.4: <https://it.wikipedia.org/wiki/Venere_di_Milo>
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