1. Introdução
O cristianismo nasceu no Oriente, na região da Palestina, porém, é no Ocidente do Império Romano – onde foi aceito após três séculos de existência – que acontece seu maior desenvolvimento. Roma é o centro da vida cultural e atrai todos os movimentos espirituais que se desenvolviam no século I. A Igreja cristã surge no auge do Império Romano, em um mundo cosmopolita, com uma miríade de pessoas da Europa, da África do Norte e do Oriente Médio.
Os primeiros cristãos se opunham ao mundo pagão, em razão da sua mentalidade idólatra, e à arte clássica grega da época, que partia da ideia para chegar à perfeição, enquanto para os cristãos o Cristo não é uma ideia, é uma pessoa, o Verbo Encarnado.
A arte cristã começou nas catacumbas, no subsolo, lugar da morte, na contramão da arte clássica greco-romana da época, abandonando completamente a ideia de perfeição. Os cristãos primitivos assimilaram as práticas religiosas das culturas helenística e romana e com elas interagiram, mas a maior herança veio da religião de Israel, cujo povo adorava ao Deus único e onde a interdição das imagens era ponto fora de discussão. O ícone surge depois, com muita influência da arte egípcia, e está presente até hoje como a arte sacra da Igreja Ortodoxa, diferente da Católica do Ocidente, que tomou novos rumos com os movimentos humanistas e com o Renascimento italiano.
Tomas Spidlik (1919-2010), S.J., nos aponta três dimensões da síntese espiritual e cultural que se cristalizam com o nascimento da cristandade: a dimensão bíblica da fé judaico-cristã; a dimensão intelectual e conceitual da reflexão procedente da Grécia e a dimensão jurídica organizativa e programática procedente de Roma. Essas três dimensões, articuladas em um só organismo, conceberam uma nova e inédita civilização (Cf. RUPNIK, 2013).
2. Os Primeiros cristãos e a imagem
A concepção de imagem pagã e sua função eram muito diferentes do espírito do cristianismo para ser a expressão da fé.
As primeiras imagens cristãs de que se tem conhecimento apareceram nas catacumbas, em arte funerária que se revestia de alegria, uma vez que, se a morte é inexorável, para os cristãos havia a certeza da Ressurreição. Na contramão do 4o período da Arte Clássica Grega, a arte funerária das catacumbas, no nascimento da arte cristã, representaria um retrocesso.
As pinturas das catacumbas mostram uma unidade de estilo e de temas: foram encontrados os mesmos símbolos na Ásia Menor, na Espanha, na África do Norte e na Itália, sem que a Igreja tenha dado indicação de um programa oficial. A fé manteve-se única graças ao contato entre as igrejas locais.
Até Constantino, no século IV, as pinturas cristãs apresentavam as mesmas características: alguns traços em uma gama restrita de cores e alguns símbolos que exprimiam o essencial. É uma busca consciente do mundo espiritual que leva ao afastamento de todo naturalismo. No entanto, há um fato capital, as imagens das catacumbas não são imagens de culto, elas permanecem na esfera do símbolo. A Igreja não havia elaborado ainda a dimensão do mistério da Encarnação, o que aconteceria após os primeiros concílios.
O cristianismo precisou ainda de alguns séculos para se convencer de que a representação de Jesus Cristo, Deus e Homem, seria lícita pelo dogma da Encarnação que, por sua vez, levou três séculos para ser entendido. Após o I Concílio de Niceia, o modo figurativo que melhor caracterizará a arte cristã será representar “Deus em Cristo” – o modo cristomórfico da representação de Deus é a efígie daquele que pode dizer: “Quem me vê, vê o Pai” (João 14:9).
3. A controvérsia
Se há um corte cronológico que diferencia a Antiguidade da Idade Média no Ocidente, este não é válido para o Oriente. O Império romano não acabou em 1453. E, segundo Jean Meyer (2006, pp. 56-57), a Antiguidade sobreviveu tanto na Ortodoxia como no Império russo, ou mil anos ao Império romano do Ocidente. O que é chamado de maneira crítica e cômoda de bizantismo eclesiástico não é um produto da Idade Média, mas o desenvolvimento sustentado pela herança de Constantino e pelos Padres gregos da Igreja.
Esse helenismo cristão e sua contrapartida política, um imperador, Constantino, que tem um grande papel religioso, apostólico, conhece uma história diferente daquela do Ocidente da mesma época. A situação política não é a mesma e a teologia possui outros ritos. O Oriente viveu grandes controvérsias sobre a natureza (divino-humana) de Cristo, desde o arianismo até o monotelismo (638-680), que o levaram a buscar precisão e a refinar questões doutrinais. No entanto, pode-se dizer que os embates dogmáticos terminaram no século VII e que a teologia posterior se limitou orgulhosamente a recompilar, conservar e transmitir um saber concluído. O teólogo João Damasceno (675-749) sustentava que seu trabalho consistia não em mostrar nada que fosse seu, mas em apresentar a verdade segundo a autoridade das Escrituras e dos Padres da Igreja.
A controvérsia passou então do plano dogmático para o plano litúrgico, aos ritos místicos da divina liturgia, concretamente, e à controvérsia sobre as imagens, questão que esteve a ponto de destruir a Igreja Oriental e o Império entre 726 e 843. Neste caso, como nas controvérsias sobre Cristo, houve uma comunhão com o Ocidente e o Papa de Roma, o que resultou num grande apoio para o triunfo da ortodoxia. Manteve-se a unidade, a catolicidade e a ortodoxia da Igreja, e da Igreja sem adjetivos, a Igreja Una do Primeiro Milênio até a cisão em 1054, e que não mudou a questão dogmática.
Imagem 1 – Cristo Pantocrator (séc. VI), o mais antigo ícone conhecido de Cristo, no Mosteiro de Santa Catarina no monte Sinai, Egito
4. Iconoclasmo e a veneração das imagens
Não se pode passar em silêncio sobre a polêmica querela das imagens quando se trata de ícones, pois a imagem discutida era a do Cristo. No entanto, foi o Iconoclasmo – movimento contra as imagens – dos séculos VIII e IX que permitiu que fossem colocados, de uma vez por todas, os fundamentos teológicos de toda a arte da Igreja, a arte sacra. Desde o início do cristianismo, foi lento o desenvolvimento do uso e da veneração das imagens e, ainda, a atitude dos cristãos não era unânime acerca da legitimidade desse culto. Se a Encarnação do Verbo parecia justificá-lo, o fato de que o Cristo agora vive em glória e, portanto, não mais circunscritível, uma circunscrição como a da arte era desaconselhável ao fiel. Exageros e superstições recomendavam prudência aos pastores. Havia dúvidas: se símbolos tais como o Cordeiro e a Âncora não seriam mais adequados ou se a Eucaristia não seria a única representação válida do Cristo (Cf. TOMMASO, 2017, p. 136).
A veneração dos ícones está fundada, aos olhos dos ortodoxos, sobre a certeza da encarnação de Deus no homem Jesus de Nazaré. Na medida em que o Inefável se revela através do humano, é possível representá-lo visivelmente. Como afirma o II Concílio de Niceia, e o VII Concílio para os ortodoxos (de 787) – que devia reafirmar o papel proeminente da imagem sagrada, depois da época iconoclasta (“destruidora de imagens”) que o procedeu –, “o ícone tende a provar a Encarnação verdadeira e não ilusória de Deus, o Verbo” (Cf. OUSPENSKY, 2007, p 162). Já o concílio precedente havia afirmado: “Pelo ícone somos levados a recordar que Deus habitou na carne, a sua paixão, a sua morte salvadora, e, por isso mesmo, a libertação que daí resulta para o mundo” (Cf. OUSPENSKY, 2007, p 162). Nas palavras de João Damasceno (670-750): “Deus que não tem corpo nem forma; nunca dantes fora representado de qualquer maneira. Mas agora Ele veio em carne e habitou entre os homens, eu represento o aspecto visível de Deus” (SARTORIUS, 1982, p. 107).
É isso que legitima não só os ícones de Cristo, uma vez que quatro tipos de ícones foram “autorizados” nesse Concílio de 787: o do Cristo; o da Virgem; o dos santos e o dos anjos. Houve silêncio sobre os outros ícones, dentre alguns que poderiam ser pensados eventualmente, tais como o de Deus Pai, do Espírito Santo e o da Trindade; pode-se dizer que os Pais da Igreja nem consideraram tais ícones. Por sua vez, o decreto encorajava a fabricação dos ícones e sua exposição nas igrejas, nos objetos litúrgicos, nas vestimentas, nas paredes e nas pranchas de madeira das casas e na rua para divulgar, onde possível, a mensagem cristã (Cf. TOMMASO, 2017, p. 143).
O II Concílio de Niceia reconheceu e retomou a obra de João Damasceno, que soube aliar a teologia da Encarnação e a teologia da beleza, e que criou um espaço litúrgico onde o “céu desce na terra”.
Já o Patriarca Nicéforo (758-828) e o monge grego Teodoro Studita (759-826) desarmaram a fórmula-chave do Iconoclasmo, que era a de Cristo não poder ser circunscrito, de que era incircunscritível. Esse vocábulo dava a base completa para o aspecto cristológico – pela união das duas naturezas (divino-humana), a carne do Verbo havia recebido a qualidade ontológica de incircunscrita – e no que se refere à pintura – não se pode então desenhar a forma do Cristo –, esse segundo aspecto sendo o corolário do primeiro. Segundo Nicéforo, os iconoclastas teriam construído esse vocábulo como uma fortaleza difícil de ser combatida, preparada para os ortodoxos. Ele se empenhou para destruir esse forte argumento, escrevendo tratados inteiros sobre o tema. Teodoro fez o mesmo (Cf. SCHONBORN, 2003, p. 180).
Uma chave para entendimento do ícone na Teologia Ortodoxa é a Encarnação, que explica não só a sua origem como também a sua permissão, posto que, segundo o Antigo Testamento, venerar uma imagem é idolatria. Outra premissa importante para a compreensão é a Transfiguração do Cristo, esse fato que antecipa a visão do corpo glorificado é essencialmente a figura retratada no ícone sagrado, daí seu distanciamento da Natureza, ou seja, o corpo pintado em um ícone não é um corpo humano, mas o corpo glorificado pela santificação.
Imagem 2 – Ícone da Transfiguração de Jesus
Assim, o mistério fundamental da fé cristã está alicerçado em Jesus, Deus que se fez homem. O culto ao ícone, ou seja, da Encarnação, também é o fundamento do ícone que impõe um fim à Lei mosaica que proíbe as imagens santas. “A apenas a Palavra da Antiga Aliança sucede pela Encarnação a Visão” (QUENOT, 2001, p. 40).
Com o decreto de Niceia II, a arte cristã encontrou seu fundamento teológico, mas foi sobretudo o ícone do Cristo e sua veneração que receberam aprovação explícita e sem reserva do Concílio.
É o mistério da Encarnação – Deus que se fez Homem – que oferece o fundamento para a veneração dos ícones. Ele é a imagem do Deus invisível (Col 1:15), escreveu Paulo na epístola aos Colossenses.
5. Ícone, a origem
Por ter se originado e se propagado no Império Romano do Oriente – (Bizâncio, mais tarde Constantinopla e hoje Istambul) – o ícone tem uma característica diáfana, isto é, uma arte do Mistério a serviço da liturgia católica (PASTRO, 1993, p. 151).
Imagem 3 – Cristo Pantocrator (1994), Claudio Pastro, Capela das Irmãs Andrelinas, São Paulo, SP (arquivo pessoal)
A palavra ícone é de origem grega: eikôn significa “imagem”, “retrato”. Embora a imagem cristã estivesse em formação em Bizâncio, designava-se por essa palavra toda a representação de Cristo, da Virgem, de um santo, de um anjo ou de um fato da história sagrada, fosse essa imagem pintada ou esculpida, móvel ou um monumento, qualquer que fosse a técnica utilizada. Hoje esse termo se aplica, de preferência, a obras pintadas, esculpidas e mosaicos. É esse o sentido que se dá ao ícone na arqueologia e na história da arte. Na Igreja também se faz uma distinção entre a pintura de parede e o ícone: uma pintura de parede, como um afresco ou um mosaico, não é um objeto de arte por si mesmo, mas faz parte de um corpo arquitetônico, enquanto um ícone pintado sobre uma prancha de madeira é em si um objeto distinto. No entanto, em princípio, o sentido e o significado de ambos são os mesmos, e podem ser distinguidos não segundo seu sentido, mas de acordo com o seu uso e sua destinação. Assim, ao se falar de ícones pode-se ter em vista as imagens sacras em geral, sejam elas pinturas, afrescos, mosaicos ou esculturas. De certa forma, a palavra “imagem”, assim como a palavra russa obraz, exprime bem essa concepção global (OUSPENSKY, 2007, p. 11).
É por esta função litúrgica que o ícone quebra o triângulo estético e seu imanentismo; ele suscita não a emoção, mas o senso místico, o mysterium tremendum, diante a vinda de um quarto princípio em relação a um triângulo: a parúsia do Transcendente de que o ícone atesta a presença. O artista se apaga atrás da Tradição que fala, os ícones não são quase nunca sinais; a obra de arte dá lugar a uma teofania; todo espectador à procura de um espetáculo se encontra aqui deslocado; o homem, tomado por uma revelação fulgurante, se prostra em ato de adoração e de oração[2] (EVDOKIMOV, 1972, p. 155).
A pátria artística do ícone é o Egito antigo, em particular os retratos funerários da época helenística, conhecidos como retratos de Faium. Bizâncio, herdeiro e continuador da Grécia antiga, é a pátria da pintura cristã dos ícones, e por lá essa pintura passou por diversos períodos. De Bizâncio, essa arte foi levada aos países Balcãs e à Rússia, onde atingiu o mais alto grau de desenvolvimento no século XV, em Moscou e em Novgorod. Os mais importantes iconógrafos russos foram Andrei Roublev e o Mestre Denys, na Moscou do século XV.
Imagem 4 – Ícone do Cristo Redentor, redescoberto em 1919 e atribuído ao mestre Andrei Roublev (c. 1410, Zvenigorod). Hoje está em exposição na galeria Tretyakov, Moscou
A questão da relação entre a pintura italiana da época e a arte do ícone russo é, ainda hoje, objeto de muitas discussões entre os pesquisadores (BOULGAKOFF, 1922, p. 201). A influência do Ocidente indubitavelmente se fez sentir na arte do ícone, e foi quando começou sua decadência, a partir do século XVI. Nos séculos XVIII e XIX, essa influência pelos traços naturalistas diminuiu, mas a arte tornou-se um negócio. No início do século XX, começou-se a compreender novamente a natureza do ícone como arte sacra e, ao mesmo tempo, renasceu a consciência dos verdadeiros fins dessa arte (BOULGAKOFF, 1922, p. 202).
5.1 O sentido do ícone
A Igreja Ortodoxa[3] conservou intacta uma riqueza imensa no domínio da liturgia e do pensamento da patrística, mas também no que se refere à arte sacra. Um ícone não é simplesmente uma imagem ou uma decoração, tampouco uma ilustração dos textos bíblicos. O ícone é algo maior para os ortodoxos: equivale à mensagem evangélica, um objeto cultual que faz parte integrante da liturgia (OUSPENSKY, 2007, p. 9).
O ícone é uma imagem, mas uma imagem sui generis, é uma Imagem Palavra, por seu percurso histórico e teológico, que converge na unidade da Palavra-Imagem, que capta a Palavra de Deus como Imagem. Por vezes, quando se refere à arte ocidental, é dito que as imagens configuram a Biblia pauperum, mas esse não é o caso do ícone, que não é simplesmente uma arte figurativa (SPIDLIK e RUPNIK, 2004, pp. 6-7).
Representando Cristo na glória, rodeado pela Igreja e pelo mundo, a presença de Deus no seio da realidade cósmica orientada para a sua realização, os ícones que figuram sobre a iconostase – fundo que separa a mesa da comunhão da nave – exprimem de forma visual a peregrinação vivida no decorrer da liturgia.
O ícone transmite o conteúdo da Sagrada Escritura não sob a forma de um ensino teórico, mas de uma maneira litúrgica, isto é, de um modo vivo, dirigindo-se a todas as faculdades do homem. Transmite a verdade contida na Escritura à luz de toda a experiência espiritual da Igreja, da sua Tradição. Por outras palavras, corresponde à Escritura, da mesma maneira que lhe correspondem os textos litúrgicos. Com efeito, esses textos não se limitam a reproduzir a Escritura tal e qual, mas são como que tecidos dela: o ícone, representando visivelmente diversos momentos da história sagrada, transmite de forma visível o seu sentido e o seu significado vital; eis porque a unidade da imagem litúrgica e da palavra litúrgica têm uma importância capital, porque estes dois modos de expressão constituem uma espécie de controle de um sobre o outro; vivem a mesma vida e têm no culto uma ação construtiva comum (OUSPENSKY, 1960, pp. 164-165).
O ícone é uma escola do olhar que por meio de cores, símbolos e de perspectiva inversa[4] abre-se à transcendência, introduz o fiel que o contempla ao invisível, ao essencial denominado hipóstase (o que está sob a substância), à Presença divina.
A arte do ícone é simbólica, antinaturalista, e sua tarefa é sagrada, porque o ícone é um mistério que expressa uma verdade revelada e, mais do que uma representação, é o símbolo da visão espiritual de uma religião e seus cânones são estabelecidos pela Tradição. O iconógrafo não é só um artista que expressa suas ideias e sentimentos pessoais, mas um mediador que transmite a visão da Igreja. Sob esse aspecto, pode-se dizer que é uma autêntica teologia.
O cristão ortodoxo vislumbra no ícone o mundo espiritual. Não há como “escrever” um ícone por um modelo vivo ou pela imaginação do artista, um iconógrafo é como um sacerdote: este, na Missa, compõe o Corpo e o Sangue do Cristo, o iconógrafo os representa com as cores.
O caso contrário é o da imagem piedosa, a pintura religiosa e profana que coloca o olhar e impõe uma visão das coisas ligadas à dimensão histórica ou contextual, uma visão desenvolvida por uma estética naturalista: de luz e sombra; proporções corporais anatômicas; expressões faciais; perspectiva linear ou perspectiva perceptivo-subjetiva, em que o artista coloca a sua dimensão psíquica e cultural, ou seja, o seu gosto, modos, emoções, afetividade e suas preferências. Sob esse aspecto, uma obra de arte é para se olhar, ela encanta a alma, emocionante e admirável ao máximo, ela não tem função litúrgica. Ora, a arte sacra do ícone transcende o plano emotivo, que é agitado pela sensibilidade. Uma certa aridez hierática desejada e o despojamento ascético da alma da obra se opõem a tudo o que é suave e envolvente, a todo enfeite e gozo propriamente artísticos. Pode-se concluir que o ícone não é uma arte decorativa, sua finalidade não é decorar a sala de uma casa, nem simplesmente embelezar um templo. É, para o fiel ortodoxo, a revelação e a proclamação da Palavra de Deus, sua verdade divina: ser meio de comunicação entre o crente e Deus.
6. A Rússia Ortodoxa Católica
Quando a Ortodoxia floresceu em Bizâncio, depois do século III, e, na Rússia, após o século X, as igrejas ficaram repletas de ícones, e eles também eram colocados nas ruas, nas casas e em lugares públicos.
Ficou conhecida como “escolha a fé” a história que conta como a Rússia se tornou católica ortodoxa. O príncipe Vladimir I de Kiev, em 986 d.C., enviou emissários para terem contato com muçulmanos, cristãos, judeus e gregos, para verem de perto o que na verdade era a realidade sensível de cada religião. Segundo o relatório dos emissários, a decisão foi pela religião professada em Constantinopla: o cristianismo sob a forma bizantina (EVDOKIMOV, 1972, p. 17). Os emissários disseram ao soberano, após terem visto uma celebração litúrgica na Santa Sophia:
Não sabíamos se estávamos no céu ou na terra, pois não há sobre a terra nada com tal majestade e beleza, e nem saberíamos como descrevê-la: só sabemos que ali Deus está presente entre os homens, e que suas cerimônias são melhores do que as de qualquer outro país. Não esqueceremos tal beleza.
Essa história indica bem a natureza das missões bizantinas: o cristianismo não era só transmitido por preocupações de “evangelização”, no sentido contemporâneo do termo, mas também por razões políticas e estéticas. A influência política de Bizâncio, aliada ao caráter místico e muito cativante de seus cultos, é uma causa humana da expansão missionária daquela época. E o verdadeiro milagre será o enraizamento durável, na alma eslava, do Evangelho e sua aceitação nesses termos.
7. Beleza e transfiguração
A arte sacra, o ícone, remete ao Belo. Na teologia ortodoxa, o Belo é uma pessoa: o Cristo. Esta é uma premissa que faz toda a diferença na arte sacra bizantina.
A busca da beleza divina pelo monge-pintor traduz a ideia de beleza como santidade e santidade como beleza, uma beleza austera, estreitamente ligada ao sofrimento e às provações. Mas este isolamento é um isolamento esplêndido que não traz apenas dor e tristeza, mas também a plenitude de uma alegria pura. Assim, segundo essa espécie de filo do ícone, o deleite diante da beleza só se justifica pela dimensão austera do conjunto e a garantia de que a beleza não degenerará em ‘prazer ilícito’, mas permanecerá na ‘beleza divina’ (CAVALIERI, 1999).
O Belo que está no ícone sagrado só pôde se realizar pela Encarnação, como Jesus encarnado mostrou-se aos homens. Cristo é o Belo e daí vem a beleza do ícone: no plano da criação humana, a beleza é uma perfeição concedida por Deus; ela é o índice de que a imagem corresponde ao modelo, à presença do Espírito de Deus no homem. A beleza do ícone é a beleza da semelhança com Deus que ele representa. Na sequência da encarnação de Deus em Jesus, qualquer homem é chamado a transfigurar-se no divino, a reencontrar a sua identidade profunda de criatura de Deus. Reencontraremos o novo rosto da criatura renovada nas figuras dos santos ícones, é aí que reside o sentido oculto dessa arte, pois não se trata de um retrato, mas de uma transfiguração espiritual da criatura que ele tenta evocar. Esse, portanto, é o objetivo dos ícones: indicar a participação do homem na vida divina (OUSPENSKY e LOSSKY, 1952, p. 34).
Cultura potente do espírito, “imagem condutora”, o ícone se assemelha à experiência dos grandes espirituais, “teodidatas” “ensinados por Deus”. Nesse extremo, esta experiência transcende em direção ao indescritível e ao indizível e postula uma radical metamorfose do ser humano, a sua deificação (EVDOKIMOV, 1972, p. 196).
E também é uma Teologia mística:
A tradição oriental jamais faz a clara distinção entre a mística e a teologia, entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e do dogma afirmado pela Igreja (LOSSKY, 2005 p. 6).
8. A arte dos ícones na atualidade
A Tradição dos ícones sagrados na teologia Ortodoxa permanece inviolável ainda hoje. A teologia do Ícone, em sua Tradição, resistiu aos novos paradigmas traçados desde o Renascimento e ao Humanismo a partir do século XVI. Nesta questão, urge verificar o significado da palavra Tradição, diferente de tradições, e como ela se aplica aos ícones.
Tudo o que foi dito sobre a “tradição dogmática” poderá se aplicar a outras expressões do mistério cristão que a Igreja produziu na Tradição conferindo-lhes igualmente a presença da “plenitude d’Aquele que preenche tudo em todas as coisas”. […] a tradição iconográfica recebe também seu pleno sentido e sua coerência íntima com outros documentos da fé (Escrituras, dogmas, liturgia) na Tradição do Espírito Santo (LOSSKY, 2006, p. 165).
Aconteceu, no entanto, na Europa, desde o final da primeira guerra, no início do século passado, um redescobrimento do ícone na cultura ocidental. Michel Quenot (2001, pp. 11-12) atribuiu o fenômeno ao mercado das artes – pelo número de exposições de obras sacras e pela frequência com que elas têm ocorrido – e também pelo fato de que colecionadores particulares têm se multiplicado. No entanto, segundo Olivier Clément (1960), o homem de hoje pressente o mistério e, na sua fria solidão e na tristeza do seu desespero, ainda existe um amor em seu olhar.
A maioria dos cristãos ocidentais admira-se diante da beleza de um ícone, porém, ignora a profundidade teológica que o acompanha na liturgia ortodoxa. O que se constata é que o ícone permaneceu na Tradição da Igreja do Oriente, enquanto a arte religiosa no Ocidente se modernizou, e segundo a visão dos ortodoxos dessacralizou-se, deixou de ser arte sacra para ser arte com tema religioso.
Há muitas obras recentemente publicadas sobre os ícones, e da demanda por ícones como objeto de decoração surgiram pintores de ícones que não se preocupam com o aspecto místico e litúrgico – pode-se comprar na Grécia, na Rússia ou em qualquer outro país cristão ícones não “escritos” por um iconógrafo. No entanto, ainda há monges iconógrafos que “escrevem” seus ícones segundo a Tradição milenar da confecção dos ícones sagrados destinados à veneração dos fiéis.
Há autores que consideram que se há alguma possibilidade de uma “re-união” das Igrejas chamadas irmãs – a Ortodoxa e a Católica Romana, separadas desde o Cisma de 1054 –, ela pode se dar pelo ícone; ou seja, a arte pode ser o instrumento da perfeita comunhão entre as duas Igrejas.
O Concílio Vaticano II (1961-1965) foi ecumênico e, por isso, contou com a participação do clero e de teólogos da Igreja do Oriente, que sempre conservou a arte do ícone. Esse fato foi importante, pois influenciou artistas contemporâneos a se inspirarem na arte bizantina. Em 4 de dezembro de 1987, João Paulo II, na Carta Apostólica Duodecimum saeculum, celebrou a veneração das imagens, por ocasião do XII Centenário do II Concílio de Nicéia. Nesse documento, o Sumo Pontífice disserta sobre os ícones como a verdadeira e autêntica arte sacra cristã.
Desde há alguns decênios para cá nota-se um surto de interesse pela teologia e pela espiritualidade dos ícones orientais; isso é sinal de ritual da arte autenticamente cristã. A este propósito, não posso deixar de exortar os meus Irmãos no Episcopado a “manterem o uso de expor imagens nas Igrejas à veneração dos fiéis” e a empenharem-se para que surjam cada vez mais obras de qualidade verdadeiramente eclesial. O crente de hoje, como o de ontem, há de ser ajudado na oração e na vida espiritual mediante a visão de obras que procurem exprimir o mistério sem nunca o ocultar. É esta a razão pela qual, hoje como no passado, a fé é a indispensável inspiradora da arte da Igreja (JOÃO PAULO II, item 11, 1987).
Mais recente, no ano de 2007, Bento XVI ao fazer sua exegese sobre o Batismo em seu livro Jesus de Nazaré escreve:
A Igreja oriental desenvolveu e aprofundou na sua liturgia e na sua teologia icônica esta compreensão do batismo de Jesus. Ela vê uma relação bastante profunda e rica de conteúdo da festa da Epifania (proclamação da filiação divina pela voz celeste; a Epifania é o dia do batismo no Oriente) e a Páscoa. […] A iconografia acolhe estas correspondências. O ícone do batismo de Jesus mostra a água como um túmulo de água que corre, que tem a forma de uma caverna, que por sua vez é o sinal iconográfico do Hades, […] (BENTO XVI. 2007, p. 34).
Bento XVI recorreu à liturgia bizantina como referência simbólica para explicar o mistério do batismo de Jesus, o autor encontrou na arte oriental dos ícones a melhor forma de expressar a mistagogia[5] para o Batismo de Jesus.
Imagem 5 – Cristo Pantocrator (2009), Marko Ivan Rupnik, Capela da Cripta de Padre Pio, San Giovanni Rotondo, província de Foggia, Itália
Artistas sacros contemporâneos como o brasileiro Claudio Pastro (1948-2016) e o esloveno Marko Ivan Rupnik (1954), S.J., expressam claramente o entendimento teológico e a influência do ícone bizantino em suas obras de arte.
O ícone, de uma forma delicada, porém constante, indica estar permeando o Ocidente secularizado.
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Notas
[1] Todas as citações de obras estrangeiras utilizadas neste artigo são traduções da responsabilidade da autora.
[2] A Igreja oriental ficou conhecida como Ortodoxa (“aquela que oferece ao Senhor o verdadeiro louvor”) depois do Cisma com a Igreja do Ocidente (a Católica Romana) no ano de 1054.
[3] A perspectiva normal, como a conhecemos hoje, em que o ponto de fuga converge no horizonte, foi descoberta pelo arquiteto fiorentino Brunelleschi na época do Renascimento. A perspectiva inversa, modo particular de representação, resulta de desenhar o objeto em um espaço fazendo convergir as linhas de fuga na direção do observador (LEAUSTIC, 2005, pp. 29-30).
[4] Do grego mystagogêin, de myo e ago – conduzir – e etimologicamente significa a ação de introduzir uma pessoa no conhecimento de uma verdade oculta e no rito que a significa. O sacerdote, aquele que introduzia no mistério, era chamado de mistagogo e a pessoa introduzida e iniciada era chamada de mystes. A mistagogia foi um gênero literário comum no cristianismo primitivo. Atualmente, a expressão pode significar catequese.