Revista Laboratório Temática 1 – A imagem de Deus: Religião, História e Arte

Theotokos: a Mãe de Deus

1. Introdução

No ano de 431, por ocasião do Concílio de Éfeso, debateu-se como deveria chamar-se e intitular-se a Mãe de Deus. Foram apresentados dois argumentos: um, por Nestório de Constantinopla, e outro, por São Cirilo de Alexandria.

Na concepção de Nestório, o termo correto a ser utilizado seria Christotokos, a “Mãe de Cristo”. Ele acreditava e indicava haver duas pessoas separadas em Jesus Cristo: o Jesus humano e o divino. Sendo assim, a Virgem Maria era portadora da carne humana de Jesus, ou seja, Portadora de Cristo, e não portadora da parte divina de Jesus, Portadora de Deus. Mas Cirilo e um grande número de bispos acreditavam que Maria deveria ser chamada de Theotokos, a “Mãe de Deus”. Essa terminologia defende que Jesus é uma pessoa com duas naturezas unidas.

Para entender melhor os conflitos de pensamentos e de ideias adotados por cada um, é preciso analisar a vida e a história de ambos.

2. Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria

Nestório nasceu em 381, na Ásia Menor, e mudou-se para Antioquia, onde exercia a função de monge e sacerdote em um mosteiro sob a supervisão de Teodoro de Mopsuéstia. Em abril de 428, Nestório substituiu Sisino e se consagrou bispo de Constantinopla, a segunda maior Sé da Ekklesia Nicena[1]. Naquele momento, ele toma, como primeiras medidas, combater aqueles que o consideravam herético. Com apenas um mês de consagração, Nestório já tinha destruído uma capela ariana[2] e convencido o imperador a emitir um decreto contra os cismáticos[3] (CAMPOS, 2016).

Já no seu primeiro ano como bispo, Nestório prega sermões contra a utilização do termo Theotokos, reforçando sua doutrina sobre a Encarnação. Logo após o concílio, Nestório foi enviado para um mosteiro em Antioquia; em 436, foi enviado para Tebas, Egito, onde permaneceu até a morte, em 451.

Vale lembrar que Nestório foi um grande escritor de língua grega, porém, a maior parte dos seus escritos, que chegaram até nós, foi em siríaco, traduzidos e editados em meados do século XVII pelo escolástico Garnier. Friedrich Loofs, teólogo alemão, foi um grande pesquisador na tarefa de examinar e estudar os textos de Nestório e de reuni-los e editá-los em 1905 (CAMPOS, 2016).

[…] parece-nos pertinente fazer uma digressão sobre a escola de pensamento cristã de Antioquia – berço intelectual do bispo. O centro de estudos teve sua origem com o trabalho de Doroteu e Luciano de Samósata, por volta do ano de 290, quando este último resolveu publicar uma edição crítica da Septuaginta a partir da compilação de uma série de manuscritos gregos, supostamente traduções dos escritos massoréticos[4]. A escola de Antioquia se consolidou por meio do apoio de seguidores provenientes de diversas partes do Império, configurando-se em polo de produção intelectual e doutrinal. Entre os pupilos mais ilustres da escola, destacam-se: Eusébio de Cesareia, Maris de Calcedônia, Leôncio de Antioquia, Eudóxio, Teognides de Niceia, Teodoro de Mopsuéstia, João Crisóstomo e o próprio Nestório. Do século III ao V, Antioquia era o único centro intelectual do cristianismo que poderia rivalizar com a escola de pensamento de Alexandria. Após o Concílio de Éfeso, o centro de estudos antioquenos entrou em declínio e foi transferido para Edessa e, posteriormente, para Nisibe, ambas localizadas na Mesopotâmia (CAMPOS, 2016, p. 366).

Hardy (1954) destaca que a cristologia formulada pela escola antioquena usava a lógica com ênfase na palavra escrita. Havia uma tendência de concentrar-se nos aspectos fatuais e históricos da vida humana de Cristo e isso levou muitos estudiosos a tratarem Jesus como histórico. Já sobre a cristologia, discutia-se a distinção entre Deus (divino) e Jesus (homem), pois se imaginava uma separação entre a realidade humana e a realidade divina de Cristo como dois seres distintos.

Teodoro de Mopsuéstia, bispo e escritor eclesiástico da cidade de mesmo nome, em um de seus textos afirma:

[Jesus] nasceu de Maria e foi crucificado nos dias de Pôncio Pilatos (…). Ele nasceu da virgem Maria como um homem, de acordo com a lei da natureza humana, criado de uma mulher (…) Ele entrou no mundo por uma mulher segundo a lei dos filhos dos homens: “Ele estava sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos” (…). [o apóstolo disse] que ele foi feito a partir de uma mulher para nos mostrar que foi formado da própria natureza humana, nascendo de acordo com a lei da natureza (…) Ele veio a Terra como uma semente de Abraão e por meio de quem Ele realizou tudo (…). Ele foi quem primeiro ressuscitou dentre os mortos, sendo transferido para uma vida imortal e imutável, tornando-se o cabeça e o renovador de toda a criação. (THEODORE OF MOPSUESTIA apud CAMPOS, 2016, p. 369).

Ainda para Nestório, Jesus não poderia ser chamado de Deus, pois Ele, Jesus de Nazaré, seria apenas um homem em quem Deus habitava. Partindo desse pressuposto, Maria não deveria ser chamada de Mãe de Deus e sim de Mãe de Jesus, ou seja, Christotokos ou ainda Antropotokos.

Nestório defendia que apenas Jesus, o homem, havia sofrido, morrido e ressuscitado, e não Deus. O mesmo aconteceu em seu nascimento, em que não se apresentava um caráter divino, uma vez que veio ao mundo por “uma simples mulher”. Com isso, Maria havia dado à luz um ser humano e não Deus. Para ele, Deus era imutável, era impossível haver duas uniões substanciais: a humana e a divina. Jesus Cristo seria portador de duas naturezas e também de duas filiações específicas e separadas: uma por ter nascido de Maria, portanto a filiação humana, e a outra, por ter sido gerado por Deus, a filiação divina.

Em 1895, um manuscrito do século VI foi encontrado por missionários americanos nas montanhas de Konak, na Turquia. Parcialmente intacto, o trabalho intitulado Bazaar de Heráclides seria a cópia de um texto grego traduzido para o siríaco e atribuído a Nestório. Em 1915, o manuscrito foi destruído durante um massacre turco aos cristãos assírios, restando apenas algumas cópias do documento. O texto original foi escrito por Nestório durante seu exílio, no ano de 451, para negar a suposta heresia pela qual fora condenado no Concílio de Éfeso. (ANASTOS apud CAMPOS, 2016, p. 370).

Nesse manuscrito do século VI, há um trecho que reforça a ideia defendida por Nestório sobre essas duas filiações:

Mais uma vez, eu digo claramente: a ignorância é um perigo para a doutrina da fé. E eu vejo que muitos participantes de nossas assembleias são modestos e cultivam uma piedade ardente, mas são ignorantes e escorregam no ensino da fé. Eu digo isso não como uma repreensão para o povo, mas, de fato, os professores não têm tempo para estabelecer um ensino exato da fé. Nosso Senhor Jesus Cristo é uma divindade consubstancial com o Pai, sendo Este criador da bem-aventurada Maria e o criador de tudo. Mas, na sua humanidade, Jesus é o filho de Maria santíssima; no entanto, ele é o nosso Senhor Jesus Cristo, duplamente divino e homem (…) sendo um filho por adesão. Então, ele nasceu nu de Maria, na condição de Filho de Deus. (…) Este Filho de Deus apresenta uma dupla natureza: a de Deus e a do homem (NESTORIUS apud CAMPOS, 2016, pp. 370-371).

Com uma ideia contrária, temos Cirilo, que nasceu na cidade de Alexandria em 375. Com a morte de Teófilo de Constantinopla, em 412, Cirilo foi consagrado seu sucessor episcopal, quando a cidade estava no auge do poder e influência no Império Romano. O historiador grego Sócrates Escolástico, estudioso da Igreja cristã, em seu livro História Eclesiástica diz que, depois da morte de Teófilo, houve uma disputa para a nomeação de um sucessor episcopal. Cirilo, ao que parecia, era sobrinho de Teófilo, o que lhe permitiu fazer e acompanhar atividades feitas pelo bispo e lhe garantiu a sucessão (CAMPOS, 2016).

Ainda segundo Sócrates Escolástico, em seu Historia Ecclesiastica (Ἐκκλησιαστική Ἱστορία)(CAMPOS, 2016), uma das primeiras medidas tomadas por Cirilo ao assumir o bispado foi fechar congregações novacianas[5] e expulsar judeus que haviam formado uma comunidade em Alexandria. Devido a essas medidas impopulares, sucedeu-se o grande embate entre Cirilo e o então governador do Egito, Orestes, que resolveu atacar a Ekklesia Nicena de Alexandria. Tal embate certamente rivalizava, também, pela hegemonia do poder local. Para proteger Cirilo e garantir seu episcopado, monges saíram da cidade de Nítria para defendê-lo das investidas de Orestes, o que deu início a uma intensa batalha, na qual o governador foi ferido.

Um fato histórico que pode ter atingido a reputação de Cirilo foi a morte da professora e filósofa Hipácia, em 415. De acordo com Watts (2006), cuja publicação é considerada a única fonte contemporânea dos fatos, a professora, prestigiada e popular, foi assassinada por cristãos, com tortura, e atingida por cacos de cerâmica; foi acusada de ser responsável pela não reconciliação entre Cirilo e Orestes, uma vez que frequentava reuniões com o último. A partir desse acontecimento, Cirilo passou a ser acusado pela morte da filósofa.

No século II, com a fundação do instituto superior de filosofia e teologia, ao qual Cirilo estava filiado, além da função de ensinar geometria, letras e astronomia, a escola também tinha o cristianismo com base em interpretações das Escrituras em seu currículo. Assim, de acordo com Campos, vários estudiosos debatiam se a escola estava ligada à ekklesia, o que pode ter sido responsável por influenciar os pensamentos de Cirilo defendidos no Concílio de Éfeso.

Na escola de Alexandria, lecionava-se o estudo e a interpretação da Bíblia, ou seja, o conhecimento do espírito do homem. No geral, a cristologia defendida pelos alexandrinos focava na divindade de Cristo. Argumentavam que o lema Logos-sarz/Palavra-carne, o Logos de Deus, teria assumido o corpo mortal de Cristo na encarnação; desta forma, Jesus não teria uma alma humana racional. Ou seja, pelo fato de a unidade entre o Jesus humano e o Jesus divino ser intrínseca, ela teria permitido a formação de uma única pessoa, uma vez que o Logos teria assumido a mente de Jesus no ato da encarnação (CAMPOS, 2016).

Segundo Campos, na obra Sobre a Encarnação do Verbo, Santo Atanásio (296-373) diz que a encarnação seria trabalho criativo de Deus, uma espinha dorsal da história sagrada. Cristo teria recebido a mesma “substância” que Deus-Pai e isso O apresentava com uma mente e alma divinas, o que explicaria Ele não habitar verdadeiramente um corpo humano e sim divino. Segundo Atanásio, Cristo teria a mesma natureza de Deus.

No tratado Sobre a encarnação do unigênito, Cirilo expõe sua defesa na cristologia e é preciso com a ideia de que Cristo foi gerado segundo a natureza humana, apesar de não abandonar sua condição divina.

O Unigênito, que conforme as Escrituras era Deus e Senhor de todas as coisas, revelou-se a nós. Foi visto sobre a terra e iluminou os que jaziam nas trevas, fazendo-se homem. Não só pelas aparências: não se pense assim, é loucura pensá-lo e dizê-lo! Nem tampouco porque se tivesse tornado carne mediante uma mudança ou transformação: o Verbo é imutável, ele permanece eternamente o mesmo! Nem porque sua existência fosse contemporânea à da carne: ele é o Autor dos séculos! Nem porque, como pura palavra (sem subsistência) se tivesse tornado homem: é ele o pré-existente, que chama as coisas a existirem e nascerem! É ele a Vida, procedente da Vida, que é Deus Pai, o qual, como sabemos, o é na realidade, existe em própria hipóstase. (CIRILO DE ALEXANDRIA apud GOMES, 1979).

Segundo ele, “Maria, que teria colocado sua condição virginal a serviço de Deus, era a colaboradora do Espírito Santo na efetivação da encarnação” (CAMPOS, 2016, p. 376). O Logos tomou forma humana e serviu-se do corpo de Maria como um templo.

3. Concílio de Éfeso

Com o impasse de ideias sobre como intitular Maria, um concílio com 250 bispos se reuniu em Éfeso, em junho de 431. Mesmo sem ter comparecido pessoalmente, o papa Celestino I enviou delegados, sendo eles os bispos Arcádio e Projeto, além do presbítero Filipe. Sete sessões foram realizadas entre 22 de julho e 3 de julho, sendo a primeira aberta, formalmente, por Cirilo.

Concluiu-se que os ensinamentos de Nestório eram errôneos e decretou-se que Jesus era uma só pessoa e não duas, mesmo que possuísse uma natureza humana e outra divina. Com isso, Maria deveria ser chamada de Theotokos, a Portadora de Deus (aquela que deu à luz Deus). “O título ‘Mãe de Deus’ não significa que Maria, de alguma forma, existiu antes de Deus ou criou Deus, mas que Maria deu à luz Jesus, que é totalmente Deus e totalmente humano.” (KOSLOSKI, 2020).

4. A Representação da Theotokos na Arte

A Virgem Maria foi muito representada na arte sacra, desde os ícones bizantinos, passando pelas Madonas renascentistas até as representações iconográficas modernas. Na tradição cristã, o evangelista Lucas teria sido o primeiro iconógrafo[6] da Virgem Maria. Lucas era um médico e, para escrever seu Evangelho, teria entrevistado pessoas que viveram próximas a Jesus e à Virgem Maria. “Maria, porém, guardava todas essas coisas e sobre elas refletia em seu coração” (Lu 2:19).

Por essa relação tão próxima e por ser também um pintor, Lucas teria produzido a primeira imagem da Virgem. A ele é atribuída a imagem da Virgem com o menino no colo, que fica nas Catacumbas de Priscila, em Roma, imagem datada do século I.[7]

As tradições mais recentes também atribuem à Lucas, o Evangelista, uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que teria sido pintada em um pedaço de madeira, que seria a mesma madeira da mesa da Santa Ceia. Assim que finalizou a pintura, Lucas deu o ícone ao seu amigo Teófilo. Este ícone foi levado à Jerusalém, depois à Constantinopla.

O ícone teria permanecido em Jerusalém e sido encontrado por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, junto com outras relíquias sagradas, como a cruz em que Jesus foi crucificado. Santa Helena, então, transferiu a imagem de Constantinopla para Roma, onde o ícone foi colocado na Basílica de Santa Maria Maior.

Outros ícones da Virgem são atribuídos a Lucas, entre eles: A Theotokos de Vladimir, Santa Maria de Impruneta e Nossa Senhora de São Lucas[8]. Há três modelos/protótipos da Mãe de Deus que são empregados em vários ícones nos séculos seguintes e que seguem essas características.

4.1 A Virgem Orante

Imagem 1 – Grande Panaghia de Jaroslav ou Grande Virgem Orante, século XIII, Yaroslavl, Rússia


Na Imagem 1, temos o modelo iconográfico da Virgem Orante, uma representação de Maria em pé com um medalhão ao peito com o Emanuel, Deus entre nós. Maria tem ambas as mãos erguidas em oração; ou a variante da Virgem com as mãos erguidas, com o menino Jesus em seu colo, ambos dentro de um círculo. Há ainda a possiblidade dela ter um Pantocrator no peito, um Cristo em majestade carregando um livro.

4.2 Eleusa/Ternura

Eleusa significa, literalmente, misericordiosa ou ternura; tem origem grega Ἐλεούσα. Os ícones desse modelo (Imagem 2) trazem o Menino Jesus se afagando no rosto da Mãe, normalmente, encostando seu nariz ou sua boca no seu rosto. Em nosso exemplo, vemos um Cristo segurando a borda do manto da Virgem e acariciando o seu rosto com a outra mão. Essas pinturas representam toda a ternura entre Mãe e Filho.

Imagem 2 – Nossa Senhora do Don, Teófanes, o Grego, século XIV, Galeria Tretyakov, Moscou, Rússia


Um ícone considerado variante desse modelo é o da Pelagonitissa, ou também conhecido como A Virgem com o Menino brincando, que fica na igreja de São Jorge, em Staro Nagoričane, Macedônia. Essa representação (Imagem 3) é considerada uma Eleusa pelo modo como o menino Jesus encosta sua boca na bochecha da Virgem, mas, nessa variante, Ele o faz com um movimento abrupto, voltando a cabeça e inclinando o corpo para trás. Outro ícone Eleusa Pelagonitissa pode ser visto na Virgem de Makarios Zographos, que fica no Mosteiro de Zrze, na Macedônia do Norte.

Não podemos deixar de mencionar a Theotokos de Vladimir, o ícone Eleusa mais famoso.

Imagem 3 – Pelagonitissa, Igreja de São Jorge, Staro Nagoricino, Macedônia.


4.3 Odighitria/Condutora

Odighitria/ a que indica o caminho ou “Condutora”. Originário do verbo grego “hodegeo” (Οδηγήτρια), esse termo designa quem guia pessoalmente alguém pelo caminho. No ícone da Imagem 4, a Virgem segura o menino Jesus nos braços e aponta para Ele, mostrando que Ele é o caminho. Desse modo, a ação da Virgem é guiar o fiel até Jesus, até a Salvação.

Imagem 4 – Ícone sérvio, século XIV, Museu Nacional da Sérvia, Belgrado, Sérvia


Nesse modelo, a Virgem e o Menino são quase sempre representados de modo frontal, voltados para quem observa o ícone. Vários outros foram inspirados nesse modelo, tais como: a Virgem do Akathistos de Zografu, em Monte Athos; a Madona Negra da Polônia; a Damascena, a Virgem das Três Mãos; Virgem de Cazã, na Rússia; Virgem de Nicopédia, de Constantinopla; a Virgem da Paixão, em Roma; Virgem de Getsemani, em Jerusalém, entre outros. Acredita-se que, após a queda do Império de Constantinopla, o ícone de São Lucas tenha sido abrigado na catedral de Assunção do Esmolensco, Rússia. No país onde muitas igrejas foram dedicadas à Hodegétria de Esmolensco, os fiéis a chamam de Nossa Senhora de Esmolensco.

4.4 Outros Ícones Ortodoxos da Virgem Maria

Além dos três modelos atribuídos à Lucas Evangelista, destacam-se outras iconografias:

  • A Theotokos de Cazã (Imagem 5):
Imagem 5 – Nossa Senhora de Cazã, século XVI, Catedral da Epifania, Moscou, Rússia


Ícone de origem Russa que, durante a União Soviética, “apareceu” em uma exposição nos EUA (Imagem 5). Em 1993, a imagem foi deixada aos cuidados do papa João Paulo II e, em 2004, após o fim do regime soviético, o papa decide devolver a imagem à Rússia, onde pode ser vista no Mosteiro de Cazã.

O ícone foi escrito sobre uma placa de madeira de tília com 31,5×26,1cm e possui traços de cera para nivelar fundo. O quadro é preenchido com várias pedras preciosas. Segundo o próprio site do Vaticano, em 1º de abril de 2003, no Palácio Apóstolo, houve uma inspeção por parte de especialistas russos e do Vaticano: “A avaliação confirmou que é um ícone autêntico, atribuível a um período não posterior à primeira metade do século XVIII, e que a preciosa cobertura – talvez criada após um evento específico – permite deduzir que o ícone era objeto de veneração particular”[9].

  • Nossa Senhora de Częstochowa, padroeira da Polônia (Imagem 6):
Imagem 6 – Nossa Senhora de Częstochowa, século XIV, Mosteiro de Jasna Góra, Częstochowa, Polônia


Este ícone foi encontrado no Mosteiro de Jasna Góra, em Częstochowa, Polônia, e foi associado ao país por mais de 600 anos. Com moldes de uma Odighitria, a Virgem aponta sua mão direita para Cristo, como caminho da salvação. Porém, nesta imagem, o menino Jesus aponta também sua mão direita para a Virgem. A tradição diz que o ícone foi escrito por São Lucas em uma mesa de cedro da Sagrada Família. Em 1382, a pintura foi danificada durante uma invasão dos tártaros. O ícone também é conhecido como A Virgem Negra e está exposta no mosteiro Jasna Gorá, na cidade de Częstochowa, Polônia. No Brasil, é conhecida como Nossa Senhora do Monte Claro.

  • O ícone Trojeručica – ou simplesmente Theotokos de Três Mãos (Imagem 7):
Imagem 7 – Nossa Senhora Trojeručica, século XVI, Monte Atos, Grécia


Este ícone está no mosteiro ortodoxo sérvio de Hilandar, no Monte Atos, Grécia. Em modelo de Hodegetria, vemos na imagem a Virgem apontando o menino Jesus como caminho da salvação. Segundo a Tradição, este ícone foi pintando por São João Damasceno, por volta do ano de 717. A Tradição ainda diz que São João foi acusado, falsamente, de traição e teve sua mão cortada, depois de rezar para o ícone da Virgem, sua mão foi curada. Para agradecer, ele havia pedido para fazer uma réplica de sua mão em prata e o anexou ao lado inferior esquerdo do quadro. “Alguns iconógrafos, em sua ignorância dos fatos, erroneamente desenharam a Sagrada Theotokos com três braços e três mãos”.[10]

4.5 A Theotokos de Vladimir (Imagem 8):

Imagem 8 – Theotokos de Vladimir, século XII, Igreja de São Nicolau em Tolmachi, Moscou, Rússia


A Theotokos/Nossa Senhora de Vladimir é uma das representações mais importantes de Maria. Datada do século XII, o ícone é uma Eleusa; um dos ícones mais celebrados da Rússia, com vários milagres atribuídos a ele. Segundo as Crônicas Russas[11], o ícone pode ter sido produzido em Constantinopla e enviado para Kiev como um presente, depois transferido para a catedral de Assunção, em Vladimir. Apenas os rostos da imagem são originais, o manto e as outras partes do corpo foram repintados. A tradição diz que o ícone foi escrito por Lucas, o Evangelista. Feito a têmpera sobre madeira, o ícone mede 106x69cm e representa o menino Jesus ao colo da mãe, envolvendo-a com seus bracinhos; a Virgem indicando-O como o caminho da salvação.

O ícone é tido como um do mais queridos da Rússia; essa veneração pode ser reforçada pelo fato da Theotokos ser a protetora daquele país. A Theotokos de Vladimir já foi usada na celebração de coroações de czares, eleições de patriarcas e outras cerimônias importantes. Ele tem três dias de celebração no calendário santo russo: 3 de junho, para celebrar a proteção de Moscou contra o Khan Mehmed Giray da Criméia, em 1521; 6 de julho, em homenagem à vitória contra Khan Ahmed durante a grande resistência no rio Ugra, em 1480; e 8 de setembro, para comemorar a libertação dos moscovitas da invasão de Tarmelão, 1395. A Nossa Senhora de Vladimir está exposta na Igreja de São Nicolau, em Tolmachi, Moscou, Rússia.

5. Considerações Finais

A devoção à Nossa Senhora é muito popular entre os católicos e ortodoxos. Os ícones das Theotokos não ficam restritos apenas às igrejas; muitas famílias ortodoxas têm ícones da Mãe de Deus em suas casas. É possível encontrar esses ícones nas paredes juntos com outros santos e são igualmente presentes em vários contextos: religioso, artístico, decorativo, etc.

Na Igreja Católica, há diferença entre culto a Deus e aquele à Virgem Maria, mais conhecido como hiperdulia. Esse termo teológico é usado pela Igreja Católica e Igreja Ortodoxa para designar a honra e o culto de veneração especial a Nossa Senhora, um culto feito através da liturgia. Entre os cultos mais populares à Virgem, citamos: o Santo Rosário, o Angelus, o Imaculado Coração de Maria, as procissões e as novenas.

Acreditamos que essa popularização de Nossa Senhora seja proveniente do fato de ela ser a Mãe de Deus, por carregar a imagem da mãe de todos nós. Ela é vista como nossa protetora, a que cuida. Essa imagem materna exerce, nos devotos, sentimento muito forte.

O culto à Virgem se expande e várias cidades têm sua devoção e a têm como padroeira, dando um número considerável de títulos a ela, tais como Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora Achiropita, Nossa Senhora da Anunciação, Nossa Senhora da Lapa, entre outros tantos.

O título de Mãe de Deus vem a debate desde o Concílio de Éfeso para reforçar a importância que Maria tem na tradição. Dar a ela esse papel materno a coloca em uma posição de destaque e importância para a fé cristã: é ser a mãe de Deus, a que está em uma posição única.

A beleza dos ícones da Virgem conforta o fiel que procura, na sua devoção, em momentos de socorro, recorre a sua figura materna. A ternura que uma Eleusa transmite, ou o fato de ela mostrar que Jesus é o caminho da salvação, faz com que o fiel coloque na Virgem uma credibilidade única; fé que permanece viva até hoje. Esse conceito estético de arte e beleza nos ícones, em nenhum momento, se contrapõe à liturgia da qual eles são iconografados.

Assim, desde os ícones da Theotokos dos primeiros séculos até os recentes, esses ícones se fazem presentes na devoção, no culto da fé e na contemplação à Virgem, que ocupa um lugar que podemos afirmar ser mais importante que o de outros santos e anjos. É nesses ícones que está presente o mistério da encarnação, o nascimento de Jesus, sua figura humana e divina e a Virgem como caminho.

Referências bibliográficas

CAMPOS, Ludimila Caliman. (2016). Entre Christótokos e Theótokos: A Construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (SÉC. IV-V). Revista de História (São Paulo), (174), 361-380. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381

HARDY, Edward R. Christology of the Later Fathers. Philadelphia: The Westminster Press, 1954

WATTS, Edward J. City and School in Late Antique Athens and Alexandria. University of California Press, 2006

KOSLOSKI, Philip. Como “Theotokos” se tornou o título perfeito da Virgem Maria. Portal Aleteia. Janeiro, 2020. Disponível em: https://pt.aleteia.org/2020/01/07/como-theotokos-se-tornou-o-titulo-perfeito-da-virgem-maria/. Consulta em 11/09/2020

BIBLIA SAGRADA, Velho Testamento e Novo Testamento. Rio de Janeiro – King’s Cross Publicações, 5ª edição, 2011

GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas, 1979

Sites consultados

https://www.newadvent.org/fathers/2601.htm (Sócrates el Escolástico: Historia de La Iglesia (ΕκκλησιαστικήΙστορία; Historia ecclesiastica)), último acesso em abril 2020

The Original Catholic Encyclopedia. El Cajon, California: Catholic Answers. (https://www.catholic.com/encyclopedia), acessado em julho de 2020

Google book para  Diccionario universal de Historia y de Geografía (https://books.google.es/books?id=RB4QAAAAYAAJ&pg=PA118&dq=S%C3%B3crates+de+Constantinopla&ei=JORYSPaJH4rSjgG-9_mJDg&hl=pt-BR#v=onepage&q=S%C3%B3crates%20de%20Constantinopla&f=false), acessado em maio de 2020

https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_atanasio_sobre_a_encarnacao_do_verbo.html; acessado em maio de 2020

https://www.ecclesia.org.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_cirilo_de_alexandria_dialogo_sobre_a_encarnacao.html; acessado em maio de 2020

http://www.pnsassuncao.org.br/images/curso-de-teologia/iii-semestre/ix-cristologia-pe-marcelo.pdf; acessado em maio de 2020

https://www.a12.com/academia/artigos/theotokos-a-mae-de-deus; acessado em maio de 2020

https://www.catholic.org/encyclopedia/view.php?id=4311; acessado em maio de 2020

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https://padrepauloricardo.org/blog/o-pintor-da-virgem-do-perpetuo-socorro; acessado em maio de 2020

http://www.vatican.va/news_services/liturgy/2004/documents/ns_lit_doc_20040825_icona-kazan_it.html; acessado em julho de 2020

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http://www.catedralortodoxa.com.br/post/2016/06/30/o-%C3%ADcone-da-virgem-de-das-tr%C3%AAs-m%C3%A3os: acessado em julho de 2020

Notas

[1] A Bíblia usa ekklesia ou igreja no sentido simples geral de: assembleia, congresso, congregação, reunião, etc.

[2] O arianismo foi uma doutrina, antitrinitária, sustentada por Ário, presbítero cristão de Alexandria, nos primeiros tempos da Igreja primitiva, que negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus-Pai. Foi condenada como heresia no Primeiro Concílio de Niceia, em 325, devido ao Antitrinitarismo da doutrina.

[3] No conceito cristão, cisma é uma divisão no âmbito de um grupo/corpo religioso, com organização e hierarquia definidas. Um desacordo ou dissidência. O cismático.

[4] Os escritos massoréticos são 24 textos hebraicos divididos em três seções, a saber: a Torá (ou “Pentateuco”); o Nevi’im (ou “Profetas”); e o Ketuvim (ou “Escritos”), (CAMPOS, 2016, p. 366).

[5] O novacianismo foi um movimento do cristianismo primitivo que tinha como base as ideias do padre romano Novaciano (251), que se recusava a readmitir os cristãos batizados que renegaram sua fé.

[6] Ícone é a representação da mensagem cristã descrita em palavras nos Evangelhos e atribuída, segundo a tradição, a São Lucas a representação da Virgem Maria. https://catolicaconect.com.br/o-primeiro-icone-de-nossa-senhora-foi-pintado-por-sao-lucas-evangelista/

[7] https://pt.aleteia.org/2017/08/16/sao-lucas-o-primeiro-retratista-da-virgem-maria/

[8] https://pt.aleteia.org/2017/08/16/sao-lucas-o-primeiro-retratista-da-virgem-maria/

[9] http://www.vatican.va/news_services/liturgy/2004/documents/ns_lit_doc_20040825_icona-kazan_it.html

[10] Portal da Igreja Ortodoxa Antioquina, http://www.catedralortodoxa.com.br/post/2016/06/30/o-%C3%ADcone-da-virgem-de-das-tr%C3%AAs-m%C3%A3os. Acesso em julho de 2020.

[11] A Coleção de Crônicas Russas é uma série de volumes destinados a colher todas as crônicas e relatos medievais eslavos orientais, com edições publicadas na Rússia Imperial, União Soviética e Federação Russa.

Sobre o autor

Jakson Alves

Graduado em Comunicação Social pela Universidade São Judas Tadeu. No Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), estudou museologia, restauro e preservação do patrimônio e arquitetura grega. Pesquisador do grupo A imagem de Deus: Religião, História e Arte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.