Revista Laboratório Temática 2 – Estudos sobre morte e pós-morte

A ausência dos rituais de despedida nas mortes por covid-19 e suas implicações para o luto

O ano de 2020 apresentou uma ingrata surpresa às pessoas de todo o mundo: a COVID-19, doença que causou uma pandemia de caráter global[1], já matou milhões de pessoas e passou de 600 mil mortes apenas no Brasil, desde então[2]. Por se tratar de uma doença altamente contagiosa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a suspensão dos velórios e missas, assim como diversas ações de distanciamento e até isolamento social para evitar novos contágios. Uma cartilha[3] elaborada pelo Ministério da Saúde, em março de 2020, para orientar o manejo de corpos no contexto do novo coronavírus, enfatiza que os velórios e funerais de pacientes confirmados/suspeitos não são recomendados. Com isso, o cancelamento dos rituais afetou os sobreviventes, que, durante a fase crítica da pandemia, não podiam velar seus mortos e sofreram as implicações da ausência ou modificação de formas de simbolizar a partida de entes queridos.

No Brasil, quando ocorriam, velórios e missas eram curtos, sem aproximação de pessoas e sem toques, abraços e outras manifestações de afeto que exigissem contato físico. Caixões lacrados impedem a visualização do ente falecido, e algo parece faltar. A morte ocorreu de fato? Como constatar, se não é possível ver aquele que morreu? Como consolar a si mesmo e aos outros sem abraços e presença?

Psicólogos especializados em luto são unânimes em destacar a importância dos rituais para a organização psicológica dos enlutados e para a demarcação da concretude da perda, tarefa essencial para a retomada da vida e reconstrução do mundo após a morte de um ente querido. Os rituais funerários, presentes em todas as culturas, são imprescindíveis para unir uma comunidade em torno da assimilação do fim de um ciclo que se encerra com a morte de um de seus membros. Além disso, não são apenas ligados às religiões, estando presentes também em sociedades majoritariamente ateístas – embora a religião e a espiritualidade orquestrem grande parte desses rituais. Segundo Vandenbos (2020[4] apud SARTORI, 2020, p. 41).

O ritual da morte ou de passagem é uma cerimônia da prática religiosa definida pela cultura, associada ao morrer e aos mortos, tem função psicológica importante para a elaboração do luto tanto para o indivíduo quanto para o seu grupo social.

São diversos os números mencionados para dizer quantas pessoas são atingidas por uma morte. Alguns falam em no mínimo seis a dez pessoas[5]. Assim, é de se imaginar que, atualmente, vive-se também uma pandemia de enlutados, considerando todas as vidas que a COVID-19 tirou, além das demais mortes decorrentes de acidentes, homicídios, doenças, suicídios, desastres naturais, entre outras. Padecemos de um processo coletivo de luto, que é interrompido e não reconhecido, o que dificulta a elaboração dessas perdas e o resgate das atividades cotidianas. As consequências dessas interrupções ainda não são inteiramente conhecidas, mas fala-se sobre agravos na saúde mental como um dos principais fenômenos associados a esse grande enlutamento mundial (OLIVEIRA-CARDOSO et al., 2020).

A morte tornou-se um tabu, ao invés de uma experiência humana natural e esperada. Evita-se falar sobre o tema, como se, assim, pudéssemos escapar de seu inevitável contato. Philippe Ariès (1990) cunhou o termo “morte interdita”, pois ela deixaria de estar presentificada e passaria a ser escamoteada, radicada, não sendo mais do controle dos moribundos e de seus familiares.

Nem sempre as pessoas estão preparadas para lidar com a perda de seus entes queridos, pois pouco se fala sobre a morte antes que ela atinja diretamente uma pessoa ou família. Quando a morte é trágica ou repentina, como na COVID-19, pode ocorrer, além das alterações esperadas a partir de uma morte, prejuízo de uma série de fatores (emocionais, cognitivos, sociais, financeiros, etc.) ligados aos familiares e amigos daquele que morreu:

Com perdas súbitas, o processo de elaboração do luto se torna mais complexo, pois tem o elemento surpresa, sem sinais, sem indício algum. Essas mortes são, por exemplo, devido a um AVC (Acidente Vascular Cerebral), a acidentes automobilísticos, a suicídio, etc. As pessoas próximas ficam tentando encontrar os porquês, os detalhes das mortes (como foi, onde foi). Elas precisam achar um entendimento racional de como aconteceu, isso lhes é fundamental para aliviar a dor, ansiedade e confusão do enlutado. (BASSO; WAINER, 2011, p. 37).

Parkes (1998) aponta a falta de expressão do luto como a causa de doenças de pessoas que perderam entes queridos. A psicóloga brasileira Maria Júlia Kovács fala, em seu livro Educação para a morte: Temas e Reflexões (2003), sobre como na morte interdita os rituais vão se tornando cada vez mais inexistentes e o luto sendo tratado como uma doença, geralmente sendo medicalizado. Há a valorização de uma expressão mais discreta do luto, além de uma “espera” de melhora rápida e breve retorno à dita vida normal pelo enlutado.

O processo do luto, de modo geral, inicia-se através dos rituais fúnebres de despedida. Nesse momento, os familiares e amigos podem chorar a dor da perda, consolar-se e enfrentar, geralmente coletivamente, os primeiros momentos da ausência que se faz presente com a morte. Visualizar o corpo morto é uma das formas de trazer concretude ao acontecimento, tornando a perda mais real, dando início ao processo de luto. Um sentimento de incerteza em relação à morte pode ocorrer caso esses rituais sejam negados.

Com o evento da pandemia de COVID-19, escancarou-se o descaso com a morte e com a vida, e muitas pessoas têm sentido uma necessidade quase instintiva de ritualizar a morte de seus entes de outras formas, utilizando tecnologias de comunicação virtual, redes sociais, entre outras. Quando os ritos não são realizados, ocorre uma sensação de ambiguidade da perda, além de favorecer o aparecimento de reações como depressão e ansiedade.

Os rituais fúnebres são eventos dedicados à pessoa falecida, mas que têm enorme repercussão entre os vivos, auxiliando no processo de luto no auge da dor e tendo implicações no campo pessoal e no coletivo, sendo tão importantes para a sociedade quanto os demais rituais, como os de nascimento, formatura, casamento, entre outros.

Rosa afirma que:

Os rituais fúnebres são determinados por um código de comportamentos aceitos culturalmente expressando crenças e ideologias que incluem desde a percepção da morte, a maneira de lidar com o fenômeno, práticas cerimoniais para despedida até o destino final do corpo físico. (ROSA, 2020, p. 35)

Um cenário de adoecimento psíquico surge no horizonte ao considerarmos as consequências da COVID-19 no âmbito psicológico. As perdas abruptas e significativas agravam a situação que já não é favorável. Há mais de um ano as pessoas se veem distanciadas dos seus entes queridos, devido a questões sanitárias impostas para tentar controlar a pandemia, e, muitas vezes, afastadas definitivamente por causa de sua morte. São medidas necessárias, mas que têm implicações cujas dimensões ainda não são conhecidas.

Apesar da pandemia ter acentuado as alterações na forma como velamos nossos mortos, ao longo do tempo, esses rituais já vinham sofrendo alterações, sendo cada vez mais breves e acelerados. Tal fato é decorrência da forma como lidamos com a morte em nossa sociedade, buscando afastá-la de todas as formas, evitando, inclusive, discutir o assunto. Quando surge, entretanto, é necessário que se tome ações que muitas vezes não estamos preparados para tomar.

Tratando-se de enfrentamento do luto, não poder ver ou tocar os mortos durante a despedida pode gerar uma dificuldade na materialização das perdas. Segundo Rosa (2020) “a não ritualização pode ser sentida como uma violação do direito à despedida digna do ente querido, gerando um contexto de angústia, dúvidas e desconfiança em relação à realidade (…)” (ROSA, 2020, p. 37). Ainda segundo Rosa, medidas de promoção do luto saudável são imprescindíveis, desde que unam o respeito aos protocolos de segurança à facilitação da realização dos rituais. De acordo com a autora, “o enfrentamento da Covid-19 pode representar um divisor de águas na temática luto” (ROSA, 2020, p. 37). A sociedade tem buscado instintivamente novas formas de práticas ritualísticas voltadas para a morte.

É necessário afirmar aqui que o luto é uma vivência necessária, com graves consequências emocionais para aqueles que o negam, e que encarar o sofrimento e a ausência, por mais que doa, é a forma mais saudável de simbolizar o acontecimento e ressignificar a vida, agora sem a pessoa que se foi. As cerimônias fúnebres, conforme Sartori (2020, p. 41), “funcionam como facilitadoras para a sua superação, são elementos significativos de ajuda e encorajamento da resolução saudável do luto”. Rituais funerais em eventos como pandemias costumam ser apressados e são chamados de rituais antecipados.

Nos casos das mortes decorrentes da COVID-19, e outras, para obedecer ao impedimento de aglomerações para realização dos rituais fúnebres, foi necessário pensar em alternativas e estratégias de suporte e apoio emocional aos familiares e amigos enlutados, como novas formas de ritualização – seja a escrita de cartas, o envio de mensagens de despedida, realização de enterros virtuais, utilização de fotos e realização de conferências com amigos e familiares –, para que cada um verbalizasse memórias de vida e se despedisse apropriadamente, possibilitando espaços e formas de se falar e vivenciar a perda.

À medida que a vacinação da população foi avançando, principalmente, as medidas restritivas foram sendo flexibilizadas e é possível observar um lento retorno à normalidade. É importante, no entanto, observar se as modificações que foram atribuídas à forma de velar e enterrar os corpos serão mantidas, ou não, e quais implicações de longo prazo essas modificações terão na população de uma forma geral.

Referências

BASSO; WAINER. Luto e perdas repentinas: Contribuições da Terapia Cognitivo-Comportamental. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas 7(1) pp. 35-43, 2011.

KOVÁCS, M. J. Educação para a morte: Temas e Reflexões. Casa do Psicólogo, 2003.

_______. Morte e desenvolvimento humano. Casa do Psicólogo, 2010.

OLIVEIRA-CARDOSO, E. A. et al. O efeito da supressão de rituais funerários durante a pandemia de COVID-19 em familiares enlutados. Rev. Latino-Am. Enfermagem, v. 28, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.4519.3361. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/TmXZcXpFLPFPK5Vbzrc3YKv/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 24 set. 2020.

PARKES, C. M. Luto. São Paulo: Summus, 1998.

ROSA, D. T. A importância dos rituais de despedida para a materialização da perda. In: Mortos sem flores: Ausência dos rituais de despedida. Org. Aroldo Escudeiro. Blumenau, 2020.

SARTORI, M. I. S. Os rituais fúnebres e sua relevância para a superação do luto. In: Mortos sem flores: Ausência dos rituais de despedida. Org. Aroldo Escudeiro. Blumenau, 2020.

[1] Fonte: OMS declara pandemia de coronavírus. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml. Acesso em: 21 set. 2021.

[2] Em setembro de 2021, o Brasil chegava perto de 600 mil mortes notificadas por COVID-19, e em todo o mundo passava-se de 4,7 milhões de vítimas fatais. Fonte: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS): Guia de Vigilância Epidemiológica do COVID-19. Disponível em: https://Covid.saude.gov.br/. Acesso em: 25 set. 2021.

[3] BRASIL. Ministério da Saúde. Manejo de corpos no contexto do novo coronavírus Covid-19. 1ª edição – 2020 – versão 1 – publicada em 25/03/2020.

[4] VANDENBOS, G. R. (org.). Dicionário de psicologia da APA. Tradução: Daniel Bueno, Maria Adriana Veríssimo Veronese, Maria Cristina Monteiro. Porto Alegre: Artmed, 2010.

[5] Fonte: A cada morte por coronavírus, seis a dez pessoas são impactadas pela dor do luto, dizem especialistas. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/01/a-cada-morte-por-coronavirus-seis-a-dez-pessoas-sao-impactadas-pela-dor-do-luto-dizem-especialistas.ghtml. Acesso em 24 set. 2021.

Sobre o autor

Ana Paula Costa Silva

Psicóloga (FIMCA-RO). Mestra em Psicologia da Saúde e Processos Psicossociais (UNIR-RO). Tanatóloga. Membro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC). Pesquisadora do grupo de Estudos sobre Morte e Pós-morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.