Revista Laboratório Temática 2 – Estudos sobre morte e pós-morte

Uma jornada em busca da verdade – “Luto”, de Eduardo Halfon

Vamos falar sobre infância. E sobre as memórias. As nossas lembranças de infância muitas vezes se misturam com as versões das histórias que foram contadas para nós – e vão sendo assim moldadas, tomando como reais algumas ficções que os adultos nos impuseram para nos protegerem de acontecimentos que poderiam de alguma forma nos traumatizar. Ou nossa memória se baseia em versões criadas por nós, baseadas em nosso repertório de fantasia e imaginação. Ou no fato em si. A busca da verdade implica mergulhar nessa “cama de gato” e discernir os fatos das versões.

A morte circunda a obra Luto, de Eduardo Halfon, publicada pela Editora Mundaréu e traduzida por Lui Fagundes (2018). Este livro integra a coleção “Nosotros”, na qual os autores foram escolhidos para dar, ao seu modo, um rico testemunho deste Novo Mundo: “Daquilo que fomos forçados a ser, daquilo que acabamos por ser e, se for o caso, daquilo que desejamos e podemos ser.”

Do início ao fim, por meio de fatos e metáforas, como se fosse um pano de fundo, é a morte que está cruamente representada – seja na imagem de um homem afogado durante um acampamento de férias, em um cavalo esquálido, na perda de um tio mafioso, nas rezas, nos agouros, nos rituais ou na imaginação do narrador. A morte está na mais misteriosa das histórias que marcou a vida do narrador desde a mais tenra infância: o tio Salomón, irmão mais velho de seu pai.

Envolto nessa névoa de real versus imaginário, o autor nos envolve em seus escritos, que relatam essa sua trajetória de retorno aos lugares de sua infância, mas sob nova perspectiva, do ponto de vista de uma pessoa adulta. A começar pelo irmão mais velho de seu pai, Salomón, que o narrador acredita ter se afogado aos cinco anos no lago Amatitlán e sobre quem não se fala. Um pequeno garotinho, ele morreu ou não afogado no lago ao lado do chalé onde o narrador passava horas de lazer? O narrador acredita piamente nisso. Será que aquele corpinho pode ou não aparecer boiando a qualquer momento?

Era o que me diziam quando criança, na Guatemala. Que o irmão mais velho de meu pai, o primogênito de meus avós, aquele que teria sido meu tio Salomón, tinha morrido afogado no lago de Amatitlán, em um acidente, quando tinha a minha idade, e que jamais tinham encontrado o corpo. (HALFON, 2018, p. 15)

O narrador passava todos os finais de semana no chalé de seus avós, próximo ao lago e não podia ver esse lugar sem imaginar que de repente apareceria o corpo sem vida do menino Salomón – imaginando-o pálido e nu boiando de bruços perto do velho molhe de madeira. Aquilo era tão real para o narrador, quando criança, que ele e o irmão até haviam inventado uma reza secreta, que sussurravam antes de mergulhar no lago. Uma espécie de conjuro, como se fosse para afugentar o fantasma do menino Salomón, cujo nome não era sequer pronunciado na família.

Neste ponto, vamos fazer uma pausa para refletir sobre o paradigma do adulto regendo o que seria bom ou ruim para a apreciação da criança – inclusive, muitas vezes subestimando a capacidade de compreensão desta. Com isso, temas como “luto” e “morte” são inclusos no que chamamos de “temas-tabus”, são evitados. Infelizmente, a morte – aquém da vontade dos adultos – está presente no cotidiano das crianças, nas histórias contadas, imaginadas, brincadas e vividas, nos desenhos, filmes, contos e livros. Elas são curiosas, espontâneas, imaginativas e questionadoras. É exatamente a essa criança, que teima desesperadamente em viver na imaginação desse narrador agora adulto, que estamos nos referindo. As crianças, em geral, ainda hoje, são afastadas dessa realidade pela ideia de que assim estariam protegidas ou porque ainda não teriam cognição e idade suficientes para lidar com tal assunto. Mas não seria nessa dificuldade em dialogar que os adultos projetam grande parte de suas próprias incapacidades e temores? Eu creio que sim.

Acho importante destacar o seguinte fato: Eduardo Halfon nasceu em uma cidade da Guatemala, em uma família judia de origens levantinas e da Europa do Leste. Mudou-se aos dez anos para os Estados Unidos. Os costumes judaicos permeiam a obra, que nos instiga com alguns questionamentos acerca dos rituais destinados à celebração da memória de entes queridos em dias sagrados como Yom Kipur.

O leitor observa a cena de baixo para cima, sob a perspectiva do narrador-criança, que cumpre seu primeiro jejum completo e acompanha a família durante um ritual na sinagoga local. É Yom Kipur (Dia do Perdão) e, na tradição judaica, costuma-se não comer e nem beber neste dia, que se inicia na véspera na hora do pôr do sol e finaliza no pôr do sol seguinte. Durante a cerimônia, o narrador nos conta que não sabia se também deveria ficar de pé na sinagoga, e então ficou sentado, olhando para cima, para eles (os adultos), ouvindo como de repente seus avôs começaram a sussurrar ao rabino nomes e quantias. Um de seus avôs dizia um nome, o rabino repetia esse nome e depois seu avô dizia uma quantia. Nomes e quantias até que: “A ladainha por fim terminou. Todos saímos para o vestíbulo onde havia uma mesa comprida com bolachas salgadas, bolachas doces, suco de laranja e café, para acabar com o jejum”.

Na ocasião, o narrador questionou o pai, que, com alguma dificuldade, explicou que era uma oração para honrar a memória dos mortos, o Yzkor. “E as quantias?” Perguntou. As quantias eram Tzedaka (doação).

Uma certa quantia de dinheiro pelo nome de cada morto, falou e eu imediatamente elaborei um conceito comercial de todo o assunto, compreendi que cada nome tinha seu preço. E como se sabe quanto vale cada nome?, perguntei a meu pai, olhando para cima, mas ele se limitou a um muxoxo de fastio e tomou um gole de café. (HALFON, 2018, p. 45)

Será que é possível mensurar valores baseados no quanto vale a memória de cada ente ou amigo ou soldado? Quanto cada uma dessas pessoas valia em vida?

O Yizkor, em hebraico, significa “lembrar”. Uma das crenças judaicas é de que somos abençoados com a memória, graças à qual podemos transcender não só o tempo, mas também o espaço e os limites do mundo físico. Mas é mais que uma prece de lembrança, é um tempo para os parentes do falecido se conectarem com as almas de seus entes queridos num nível mais profundo; a tradição diz que durante a prece de Yizkor as almas dos falecidos descem do céu e se juntam àqueles que lhes são mais próximos. Ao lembrarmos dos entes queridos, rompemos a barreira que separa este mundo físico (onde nos encontramos) e o mundo espiritual (onde se encontram os que partiram), criando assim uma forte conexão de almas. E não há conexão mais forte que recitá-lo no dia de Yom Kipur, quando as almas também são julgadas e nós as ajudamos com o mérito da oração e da tsedacá (caridade). Por isso, durante o Yizkor estipula-se uma quantia de tsedacá a ser doada em mérito aos entes queridos que já partiram.

Com uma linguagem poética e envolvente, o leitor se torna cúmplice de Halfon nessa narrativa de resgate de suas raízes e da incessante e angustiante luta para dissociar a ficção da realidade. O narrador sempre acreditou que Salomón, por exemplo, morreu no lago, fato que marcou demais a sua infância e, supostamente, a do seu irmão. Mas ele descobre que o tio nasceu com sérios problemas de saúde e ainda pequeno foi levado a um hospital em Nova York, onde faleceu. “De onde você tirou que morreu no lago, meu amor?”, pergunta a mãe a certa altura.

Salomón morreu sem ninguém da família por perto, foi enterrado em um cemitério não judaico; consequentemente privado dos rituais religiosos correspondentes. Na época, o menino não pôde ter seu corpo agraciado com os rituais tradicionais judaicos, cujos objetivos são prestigiar a pessoa falecida e os enlutados. Não ter tido a benção de honrar o corpo do filho trouxe uma angústia absurda e exponenciou o sofrimento da família, especialmente o da mãe. Entre os rituais, por exemplo, existe o hábito de cobrir o rosto do falecido com um pano branco, tirar-lhe as roupas e os adornos, enrolar o corpo em um lençol branco, deixá-lo com os pés voltados para porta e acender duas velas na direção da cabeça. Ao enterrar esse corpo sem vida, ele passa por uma lavagem chamada Tahará e é envolto em uma mortalha. Os homens são enterrados com o talit[1] usado em vida. Rezas específicas são feitas no dia do enterro, como o cadish, e também se recitam salmos. As famílias e conhecidos costumam visitar o túmulo, rezar e acender velas em memória do falecido trinta dias após o falecimento (shloshim), na inauguração do túmulo (matzeiva) e especialmente no “aniversário da morte” ou na véspera do ano novo judaico.

Mesmo que tardiamente, Salomón foi devidamente transferido e agraciado com todos os rituais, o que acalentou o coração de uma mãe judia já desesperada pela perda tão prematura. “Em hebraico existe uma palavra para descrever uma mãe cujo filho está morto, talvez porque essa dor é tão grande e peculiar que precisa de uma palavra própria, Sh’khol”.

Nessa jornada, o narrador cruza com comoventes narrativas de outras crianças afogadas, cujos nomes não eram “Salomón”. Eram Juan Pablo, Luis Pedro, Juan, Francisco… Histórias de outras famílias, e não se acovarda diante de obstáculos na busca do conhecimento da sua verdade.

A certa altura, ele conhece Dona Ermelinda, uma anciã que está sempre no monte recolhendo suas folhinhas. Ele chega ao pátio de Dona Ermelinda por uma trilha estreita. Ela era uma curandeira, mas as pessoas da aldeia a chamavam de fomentadora “pois para curá-las de enfermidades as fomentava com óleos e misturas e unguentos que ela mesma fazia”. Usava sobretudo ervas e raízes, mas às vezes outras coisas.

O senhor anda procurando por um menino afogado. Suas palavras envolveram minha cabeça como se fosse um celofane… mas a voz trêmula da anciã se adiantou. À noite sonhei com o senhor aí mesmo, falou, na minha araucária. (HALFON, 2018, p. 72)

Dona Ermelinda falou que bebesse devagar, que o ajudaria a ver a verdade. O narrador até perguntou inutilmente quais ervas e raízes ela tinha colocado e sorveu aquela água morna. “Começou a me invadir uma estranha sensação de leveza, de sono, de estar e não estar. A anciã me observava com firmeza, a cara franzida, como se tentasse entender ou decifrar algo”.

A anciã falou sobre os maias mais sábios que, depois de criar todas as coisas do mundo, se deram de conta de que tinham ficado sem milho e sem barro. Então, pegaram uma pedra de jade, a talharam até formar uma flecha e, quando sopraram sobre a flecha, esta virou um colibri, que saiu voando pelo mundo. O Tz‘unun. O colibri que voa daqui para lá com os pensamentos dos homens.

Esse livro, de forma aparentemente simples, nos propõe este diálogo tão complexo sobre nossa própria finitude, nossas crenças e tradições. Eduardo Halfon nos convida a desbravar nosso próprio passado e questionarmos sobre o que é real e o que é imaginário. Luto é um livro para corajosos, porque somente os corajosos conseguem enfrentar os seus próprios fantasmas.

Referência

HALFON, Eduardo. Luto. Tradução Lui Fagundes. 1ª ed. São Paulo: Editora Mundaréu, 2018.

ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Tradução de Luiza Ribeiro 1ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 10ª ed. 4ª tiragem. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2020.

[1] O talit é um vestuário especial que inspira temor e reverência durante a oração. Originalmente, a palavra significavatúnica ou “manto”.

Sobre o autor

Luciana Carnial

Formada em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero-SP, com Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Autora do Livro “Socorro Manhê”. Integrante do grupo de pesquisa "Estudos sobre Morte e Pós-Morte", do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.