Revista Laboratório Temática 2 – Estudos sobre morte e pós-morte

Sobre a morte e o viver – reflexões sobre a obra O Deserto dos Tártaros

Resumo

Inspirado na obra O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, este artigo pretende refletir sobre os principais aspectos encontrados no romance publicado em 1940: a busca de sentido, o tempo, a verdade, a morte. Fatores da nossa existência que costumam gerar angústia, medo, culpa. Longe de apresentar respostas para assuntos tão complexos, que intrigam a humanidade desde os primórdios, propomos reflexões sobre a maneira como lidamos com nossas vidas. Hoje, no século XXI, é fácil perceber que a busca de sentido muitas vezes está associada a conquista de sucesso, de poder e de dinheiro. O Tempo se esvai sem qualquer questionamento e importância, desperdiçado em coisas banais. A Verdade tem sobrevivido às constantes investidas das fake news, que cerceiam o direito fundamental à informação. E a morte, ainda que se apresente constantemente em nossos dias, continua sendo banalizada e negada.

Introdução

A obra O Deserto dos Tártaros, publicada em 1940, ainda hoje nos remete a reflexões imprescindíveis, dentre elas, “o que é a verdade?”; “o que é o tempo?” – além de como nossas vidas podem ser manipuladas e influenciadas por falsas verdades e perspectivas errôneas.

Na história de Dino Buzzati, seu personagem principal é um jovem militar, chamado Giovanni Drogo, designado para servir numa região desértica, montanhosa e solitária, conhecida como Forte Bastiani. Nessa fortaleza esquecida e isolada, a função dos militares era a de proteger as fronteiras do país contra uma possível invasão dos tártaros, assim, todos os que ali se encontravam precisavam estar preparados para o dia da chegada desses invasores. No entanto, toda essa expectativa fora criada e manipulada pelo sistema para garantir a presença dos militares numa fortaleza que não tinha uma real função. Essa manipulação de informação gerou uma “aposta na imobilidade”, como bem coloca Ugo Giorgetti na apresentação da obra O Deserto dos Tártaros, segundo o qual, “se não fizermos nada além de aceitar as coisas como elas são, um dia virá algo para redimir nosso pobre cotidiano, algo notável e brilhante que a vida nos reserva mais para a frente”.

O herói de Dino Buzzati é o responsável pelo seu próprio destino, por suas escolhas, mas estas, por sua vez, são simplesmente manipuladas. Assim, ele se torna agente de seu próprio sofrimento, arriscando trilhar um caminho inóspito, porque lhe parece ser este o único modo de dar sentido à vida. Como bem pontua Sartre (2017), “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”.

1 – A busca

Nomeado oficial, o personagem Giovanni Drogo se prepara para deixar sua cidade, família e amigos, acreditando ter sido promovido para compor a Guarda num dos principais fortes da fronteira, o Forte Bastiani. Enquanto vestia, pela primeira vez, o uniforme de tenente, refletia sobre os benefícios da nova vida. Os míseros anos que vivera na academia militar ficariam para trás, “(..) agora ele era oficial, teria dinheiro, belas mulheres, quem sabe, olhariam para ele.” (BUZZATI, 2017, p. 7).

A amargura de deixar pela primeira vez a velha casa, onde nascera para a esperança, os temores que traz consigo qualquer mudança, a comoção de despedir-se da mãe enchiam-lhe a alma, mas sobre tudo isso pesava um insistente pensamento, que não conseguia identificar, como um vago pressentimento de coisas fatais, como se estivesse para iniciar uma viagem sem retorno. (BUZZATI, 2017, pp. 7-8)

O jovem Drogo poderia estar preocupado com suas novas atribuições, com os novos relacionamentos, com a viagem, com o desconhecido. Sentia-se perdido em seu próprio quarto. Não conseguia externar qualquer sentimento diante das recomendações que ouvia de sua mãe. Nem mesmo conseguia encontrar os objetos que compunham sua farda, ainda que estes estivessem no mesmo lugar de sempre.

Diferente do que Drogo imaginava, não se tratava de uma promoção. O Capitão Ortiz revelou que era muito comum militares pedirem transferência para o forte, pois assim o tempo de serviço seria contabilizado em dobro. A cada nova revelação, suas expectativas davam lugar à frustração. O forte era, na verdade, uma construção muito velha, sem muita importância, considerado de segunda categoria, localizado numa fronteira morta, sem qualquer ameaça de batalha. O povoado mais próximo estava localizado a cerca de trinta quilômetros, sem atrativos para diversão.

Sentiu-se repentinamente sozinho, e sua empáfia de soldado, tão desembaraçada até então, enquanto haviam durado as experiências de guarnição, com a cômoda casa, com os amigos alegres sempre ao lado, com as fortuitas aventuras nos jardins noturnos, toda a sua segurança lhe faltava de repente. (BUZZATI, 2017, p. 18)

Drogo se deu conta de que a tão esperada viagem rumo ao Forte Bastiani não correspondia ao que tinha imaginado para sua vida. O poder, o dinheiro, as belas mulheres e o reconhecimento se tornaram uma ideia bastante distante, longe da realidade. Ao refletir sobre a rotina que mantinha nos tempos de guarnição, o tenente reconheceu valores que lhe pareceram importantes, e que aos poucos ficavam no passado.

É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas, de que buscam poder, sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm, subestimando os autênticos valores da vida. (Freud, 2020, p. 14)

Nesse contexto, observamos como a desilusão enfrentada por Drogo se faz cada vez mais presente nos dias atuais. Buscamos, constantemente, a realização de um ideal, um novo sentido para a vida, muitas vezes incongrutentes com a realidade.

2 – A passagem do tempo

Ao chegar ao Forte Bastiani, impressionado com a hostilidade e o vazio do lugar, Drogo tentou negociar seu retorno. Explicou, ao major Matti, que não havia feito qualquer pedido para ser transferido para o local. Não entendia o motivo para estar lá. Mas com muita habilidade, e um certo tom de ameaça, o major conseguiu fazer com que ele desistisse da ideia de partir. Segundo Matti, o coronel poderia ficar magoado com a atitude do recém-chegado: “(…) como se fizessem uma injustiça ao seu forte. Bem, se eu fosse o senhor, se quer que eu seja sincero, preferiria evitar…” (BUZZATI, 2017, p. 22). Drogo aceita a proposta do major para ali permanecer por quatro meses. Depois desse tempo, sob a justificativa de uma alteração no exame médico, seria mais fácil retornar sem comprometer sua carreira.

Passados quatro meses, Giovani Drogo finalmente se encontra com o médico. Enquanto o Dr. Ferdinando Rovina preenche o atestado, Drogo fica imóvel diante de uma janela, admirando o vale, as sombras geométricas, as muralhas e toda a estrutura da fortaleza.

As guardas de serviço tinham deposto as armas e se moviam, uma por uma, na direção das diversas portas do forte. Sobre a neve, a cadência de seus passos fazia um rumor surdo, mas por cima voava a música das fanfarras. Depois, mesmo que fosse inverossível, os muros, já cercados pela noite, ergueram-se lentamente em direção ao zênite, e de seu limite supremo, emoldurado por tiras de neve, começaram a desprender-se nuvens brancas em forma de airão, navegantes dos espaços siderais. (..) Drogo sentia a premência do próprio destino. (BUZZATI, 2017, p. 55)

No momento da entrega do atestado, o paciente rejeita o documento, como se estivesse hipnotizado pelas paredes úmidas, pela rotina militar do Forte Bastiani e pelo deserto que o cerca. Numa mistura de angústia, dor e felicidade, o tenente decide continuar no forte.

Todas essas coisas já haviam se tornado suas, e abandoná-las seria doloroso. Drogo porém não sabia, não suspeitava que a partida lhe daria trabalho, nem que a vida do forte engolia os dias um após o outro, todos iguais, numa velocidade vertiginosa. Ontem e anteontem eram iguais, ele não mais sabia distingui-los; um acontecimento de três dias antes ou de vinte acabava por parecer-lhe igualmente distante. Assim se dava, à sua revelia, a fuga do tempo. (BUZZATI, 2017, p. 57)

O apelo por uma guerra contra os tártaros ecoava por todos os cantos. E, para Giovani Drogo, a batalha seria o ponto alto de sua vida. Os tártaros concediam sentido à existência do Forte Bastiani. Além disso, o tenente já tinha feito uns poucos amigos e estava familizarizado com os hábitos do local; com o ranger das portas, com o barulho da goteira que insistia em atrapalhar seu sono e com a monotonia dos dias.

3 – A verdade versus fake news

Após quatro anos de vida dedicada ao Forte Bastiani, Giovani Drogo decide visitar sua cidade. Ao chegar à casa da família, sente a felicidade se transformar em tristeza:

A casa parecia-lhe vazia em comparação ao que fora antes. Dos irmãos, um fora para o experior, outro estava viajando sabe-se lá por onde, o terceiro estava no campo. Restava apenas a mãe, e também ela, dali a pouco, precisou sair para ir à igreja, onde a esperava uma amiga. (BUZZATI, 2017, p. 112)

Já não era mais possível encontrar os velhos amigos, pois estes agora desfrutavam de suas carreiras em impotantes negócios na política e em grandes empresas.

Por recomendação de sua mãe, Drogo foi conversar com o general, com o objetivo de conseguir transferência para sua cidade natal. Ali, existia uma grande possibilidade de se retirar de vez do inóspito Forte Bastiani. Mas para o seu azar, o general informou sobre a existência de um novo regulamento. A comunicação oficial já havia sido enviada para o forte e determinava um prazo para o recebimento de pedidos de transferências. Haviam, inclusive, recebido pedidos de muitos dos companheiros de Drogo. Por fim, muito provavelmente, o tenente não seria beneficiado pelo novo regulamento, pois em sua ficha constava uma advertência regulamentar. Com tudo isso, sentiu-se aniquilado, injustiçado.

Drogo viu que tinha feito papel de bobo, viu que os companheiros o tinham passado para trás, que o general devia ter dele uma impressão bastante negativa e que não havia mais nada a fazer. A injustiça ardia-lhe no peito, do lado do coração. “Poderia até sair, pedir baixa”, pensou, “de qualquer modo não vou morrer de forme, sou jovem ainda”. (BUZZATI, 2017, p. 123)

Giovani Drogo retorna para o Forte Bastiani, vê a partida de alguns companheiros e tenta se conformar com a ideia de permanecer no local. Nutre, ainda, uma grande esperança pelo grande dia da batalha contra os tártaros, como que numa incessante busca para dar sentido à sua permanência, à sua existência.

Muitas das informações que chegaram até ele eram falsas. E tinham como único objetivo, manter a ordem e a rotina no forte. Falsas notícias de possíveis ataques faziam parte do jogo de manipulação para manter os militares empenhados em seus papéis, passando-lhes uma falsa sensação de importância e poder. Nesse sentido, Drogo pode ser interpretado como o sujeito causador de seu destino, mas também como vítima de um futuro que lhe foi determinado, vítima de fake news.

As fake news podem ser entendidas como a veiculação de conteúdos falsos de forma deliberada, com a inteção primordial de obter algum tipo de vantagem, principalmente de cunho econômico, político ou social. É importante notar que as fake news – a despeito de o conceito ser atual, passando a vigorar no século XXI – acompanham o desenvolvimento da humanidade há muito tempo.

Nessa concepção, Foucault (2018) compreende a verdade como produto das relações de poder, que sofrem mudanças no decorrer da história. Surge então uma correlação entre poder e saber, uma vez que não há poder sem saber e não há saber sem poder, ou seja, o saber acaba sendo imposto pelo poder, e o poder é fruto do saber. Logo, a verdade é produzida e influenciada pelo poder, assim como também sofre alteração dependendo do tempo e espaço, sendo então o poder um produtor de saber e gerador e molde da verdade.

A obra de Dino Buzzati nos retrata a alegoria da condição humana, apresentando as mais diversas relações do homem com seus maiores inimigos: o tempo e a informação. A relação entre poder e informação, que gera hábitos que são facilmente manipulados e transformados numa pseudoverdade, também é bastante clara na obra O Deserto dos Tártaros:

Só muitos meses mais tarde, olhando para trás, reconhecerá as míseras coisas que o ligam ao forte. (…). Tornaram-se hábitos para ele os colegas, (…) a mesa sempre pronta e farta, (…) os passeios realizados, (…) competição de bravura com os companheiros. (…). “É sempre assim, os recém-chegados no começo ganham sempre. Com todos acontece o mesmo, iludimo-nos de sermos realmente valentes, só que, ao contrário, é apenas questão da novidade, os outros também acabam por aprender o nosso sistema, e um belo dia não se consegue mais nada”. (BUZZATI, 2017, pp. 56-57)

Conforme já exposto, as fake news sempre existiram, porém não numa amplitude global como atualmente, e, com a pandemia de COVID-19, seu poder de destruição da verdade talvez tenha se ampliando. Assim, partindo da premissa de que a verdade é o fundamento para a vida em sociedade, quando passamos a não mais confiar uns nos outros, o processo de cooperação que é tão necessário para vivermos em comunidade se torna quase impossível.

Esse mesmo contexto de falta de cooperação é vivenciado dentro do Forte Bastiani, gerando no grupo, e principalmente em Drogo, uma solidão e uma falta de sentido na vida, como bem explorado no Capítulo XXIV:

O tempo, entretanto, corria, marcando cada vez mais precipitadamente a vida com a sua batida silenciosa, não se pode parar um segundo sequer, nem mesmo para olhar para trás. (…). Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca. Dia após dia Drogo sentia aumentar essa ruína (…). Na vida uniforme do forte faltavam-lhe pontos de referência, e as horas lhe fugiam antes que ele conseguisse contá-las. (BUZZATI, 2017, p. 144)

Precisamos estar atentos aos discursos que constroem teses cujas origens não podem ser comprovadas, não nos deixando confundir a realidade com a verdade – como bem estabelece Hannah Arendt (2017), ao fixar que muitas vezes não estamos preparados para a fabricação de uma realidade mentirosa.

4 – A morte

A primeira morte retratada na obra é apresentada no capítulo XII, durante uma expedição comandada por Giovani Drogo no Reduto Novo – localizado a 45 minutos do Forte Bastiani. Drogo avista uma mancha negra se movendo no deserto. Depois de muitas suspeitas e fantasias a respeito de uma possível invasão dos tártaros, chegam à conclusão de que se trata de um cavalo. O soldado Giuseppe Lazzari reconheceu o animal como sendo seu, acreditando que alguém o teria deixado escapar. Enquanto a tropa retornava para o forte, soldado Lazzari, às escondidas, decidiu resgatar o animal. Sem saber a senha combinada para a troca das guardas, que permitiria seu retorno, sua vida corria perigo. Caso se aproximasse das muralhas do forte sem comunicar a senha, atirariam contra ele. Esta era a regra! Conduzindo o cavalo, ao se aproximar das muralhas o guarda questionou a senha, e Lazzari não soube responder. Mesmo se identificando e sendo reconhecido por seu colega de guarda, Lazzari foi alvejado com um tiro na testa. 

Portanto, através do contexto apresentado pelo livro, podemos realizar uma conexão entre literatura e psicologia, numa reflexão necessária apresentada por Ernest Becker (2021), já que, durante séculos, os homens vêm se recriminando por sua insensatez – o fato de terem dedicado sua lealdade a este ou aquele, de terem acreditado de maneira tão cega e terem obedecido de maneira tão grata. Quando os homens escapam de um feitiço que esteve muito perto de destruí-los e pensam nele, parece que ele não faz sentido.

Assim como na situação narrada no livro, o guarda se vê fascinado por algo que não compreende, apenas obedece a ordem: sem a senha, banaliza-se a vida. Os homens adoram e temem o poder e, por isso, dedicam sua lealdade àqueles que o administram. (BECKER, 2021).

É importante observar que Lazzari era um rapaz com pouco tempo de serviço, que teve sua vida ceifada por não saber a senha de entrada, mesmo sendo reconhecido por seus pares. Foi aniquilado por não cumprir as regras e protocolos instituídos no forte. A ausência da “chave” fez com que Lazzari sofresse as duras consequências impostas pelo sistema. Cabe refletir se Tenentes, Majores e Coronéis teriam o mesmo fim.

O capítulo XV marca a morte do tenente Angustina. Sob o comando do capitão Monti, Angustina, já adoentado, foi convocado para participar de uma expedição para delimitar a fronteira. Assim como o capitão, todos os soldados usavam roupas e botas apropriadas para a tarefa. Apenas Angustina usava botas e roupas comuns. Em meio ao frio congelante, a tropa seguia por caminhos bastante íngremes, escolhidos propositalmente, pelo capitão, para testar a força, a determinação e a capacidade de Angustina.

Depois de um longo trajeto, a tropa percebeu que os oficiais do Norte, do outro lado da fronteira, já haviam demarcado o território. Por isso, decidiram fazer uma pausa para um descanso. Caíra a noite e logo tudo estava repleto de neve. Alguns soldados conseguiram se abrigar, desenrolaram suas capas e se cobriram. Com roupas e calçados inadequados para a situação, Angustina ficou sem proteção. Exposto ao frio, sentindo o gelo penetrar suas entranhas, morreu!

No Forte Bastiani, sua morte foi considerada heroica: “Ele como nós, não encontrou o inimigo, para ele também não houve guerra. No entanto, morreu como numa batalha. (…) Soube morrer no momento exato”. (BUZZATI, 2017, p. 105). Aqui, percebemos que o pensamento da morte está associado à ideia de ruptura do composto humano. A dor da morte é relacionada não só com os sofrimentos reais da agonia, mas também com a tristeza de uma amizade rompida.

Para Becker, o trágico destino do homem faz com que este se justifique “desesperadamente como um objeto de valor primordial no universo, se destacar, ser um herói, dar a maior contribuição possível para a vida no mundo, mostrar que vale mais do que qualquer outra coisa”. (BECKER, 2007, p. 22).

Assim, parafraseando Philippe Ariès, é no contexto do homem diante da morte que a obra de Dino Buzzati nos apresenta uma análise profunda a respeito do tema. As primeiras duas mortes apresentadas foram mortes coadjuvantes, porém o ápice do romance é o fim do personagem Drogo.

Todos os homens de hoje experimentaram nalgum momento da vida o sentimento mais ou menos forte, mais ou menos confessado ou reprimido, de fracasso: fracasso familiar e fracasso profissional. A vontade de promoção impõe a todos não parar numa etapa, procurar mais adiante novos e mais difíceis alvos. O fracasso é tanto mais frequente e ressentido quanto o êxito é desejado e jamais satisfatório, sempre remetido para mais longe. Porém, chega um dia em que o homem já não aguenta o ritmo de suas ambições progressivas, caminha menos depressa que seu desejo, cada vez menos depressa, e descobre que seu modelo se torna inacessível. Então sente que sua vida fracassou. (ARIÈS, 2013, pp. 181-182)

Partindo dessa reflexão, encontramos Giovanni Drogo, agora com 54 anos, major. Doente, magro e sem força para as tarefas no Forte Bastiani, aguardava os poucos anos para sua aposentadoria. E o que parecia improvável estava prestes a acontecer: a lenda sobre uma possível guerra contra os tártaros estava prestes a se tornar realidade. Os inimigos estavam, de fato, avançando naquela direção. Drogo ficou entusiasmado com a notícia. A tão sonhada batalha que daria sentido à sua vida finalmente se aproximava. Mas toda essa esperança foi frustrada pelo tenente-coronel Simeoni.

Conforme compreende Ariès (2013, p. 182), “um dia o homem descobre que é um fracassado: nunca se vê como um morto”. Será esse sentimento de fracasso um traço permanente da condição humana? Talvez sob a forma de uma insuficiência metafísica que se estende pela vida toda, mas não sob a forma da percepção pontual e súbita de um choque brutal. Exatamente o contexto vivenciado por Drogo.

Sem consultá-lo, o tenente mandou preparar uma carruagem para levar Drogo à cidade. Afinal, nas condições em que se encontrava, não seria possível batalhar. Além do mais, era necessário desocupar o quarto, que serviria de hospedagem para os novos soldados.

Ninguém, em meio ao alvoroço do forte, aonde já chegavam os primeiros escalões de reforços, prestou muita atenção num oficial magro, de rosto descarnado e amarelo, que descia lentamente as escadas, dirigindo-se ao saguão de entrada, e saía para onde estava parada a carruagem.
(…)
Nada, realmente nada ficava disponível para Drogo, ele estava só no mundo, doente, e o haviam enxotado como a um leproso. “Malditos, malditos”, dizia. (BUZZATI, 2017, pp. 165-66)

No caminho de volta, Drogo decidiu passar a noite numa estalagem. Sem a presença de pessoas queridas, sem o reconhecimento do rei, sem triunfar sobre os tártaros, sem realizar o grande sonho, sob a luz de um candeeiro, percebia a chegada da morte.

Ah, é uma batalha bem mais dura que aquela que outrora esperava! Até velhos homens de guerra prefeririam não experimentá-la. Porque pode ser belo morrer ao ar livre, (…) mais triste é certamente morrer de ferimentos, após longas penas, num quarto de hospital; (…) Mas nada é mais difícil do que morrer num lugar estranho e desconhecido, no leito comum de uma estalagem, velho e desfigurado, sem deixar ninguém no mundo. (BUZZATI, 2017, p. 169)

Daqui a pouco deverá surgir a lua.

Terá tempo, Drogo, de vê-la, ou terá que partir antes? A porta do quarto palpita com um leve estalo. Quem sabe é um sopro de vento, um simples redemoinho de ar dessas inquietas noites de primavera. Quem sabe, ao contrário, tenha sido ela a entrar, com passo silencioso, e agora esteja se aproximando da poltrona de Drogo. Fazendo força, Giovanni endireita um pouco o peito, ajeita com a mão o colete do uniforme, olha ainda pela janela, um brevíssimo olhar para sua última porção de estrelas. Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri. (BUZZATI, 2017, p. 171)

É importante perceber que, no caminho, Drogo resolve dormir numa hospedaria, amargurado pela ironia incrível gerada pelo processo da morte, que o faz perceber que perdera a vida inteira no forte, sendo posto para fora no momento da chegada do evento tão esperado. Essas são reflexões cabíveis no momento da morte. Morte acompanhada de solidão.

Nesse sentido, Ariès (2013), contextualiza o mesmo drama. O doente já no leito. Vai morrer muito em breve e, no entanto, nada acontece de extraordinário. A agonia é coisa natural, que não convém dramatizar: é natural morrer, por que então nos esforçamos em negar a natureza e viver fora dela? Assim, o tempo é redimido e a morte encerra o seu longo jogo com a esperança.

A morte que é experimentada na luta pelo reconhecimento não é uma necessidade biológica. Ela está situada numa esfera interpessoal. (…)

Não é a superioridade física ou a destreza de uma das partes que determina o resultado da luta. O decisivo é, antes, a decisividade para a morte, ou seja, a “capacidade para a morte”. (HAN, 2020, p. 13)

Consequentemente, no contexto da obra, a morte era a grande aventura esperada, não havendo por que lamentar que tenha vindo assim, obscura, solitária, aparentemente a mais insignificante e frustradora.

Para Ariès, a arte de morrer é substituída pela arte de viver. Nada acontece no quarto do moribundo. Tudo, pelo contrário, é distribuído pelo tempo da vida e em cada dia dessa vida. Na obra de Dino Buzzati, o tempo parece estacar, como se a fuga para a decepção constante tivesse esbarrado afinal numa plenitude: que é a consciência de enfrentar com firmeza e tranquilidade o momento supremo da vida de todo homem.

Mas que vida? Não importa qual. Uma vida dominada pelo pensamento da morte, uma morte que não é o horror físico ou moral da agonia, mas o oposto da vida, o vazio da vida, incitando a razão a não se apegar a ela: eis por que existe uma relação estreita entre bem viver e bem morrer. (ARIÈS, 2013).

Sendo assim, a batalha (morte) lhe parece então mais dura do que as outras com que sonhara, e mais nobre do que a travada por Angustina, sob as vistas do capitão Monti e dos soldados. Na solidão, Drogo não tem testemunhas, está completamente só. Não pode mostrar a ninguém a fibra do seu caráter e a disposição com que morre. Por isso mesmo, esta morte se revela mais nobre que as das batalhas. E o tempo, que pareceu perdido durante a vida, surge ao cabo com ganho completo.

5 – Considerações finais

É importante observar como, no contexto da discussão, a introjeção de uma obra literária torna-se por vezes fundamental. Partindo da ficção, chegamos à realidade de uma forma muito mais concisa, muito mais crítica. Toda a experiência que estamos enfrentando nos últimos tempos nos traz uma série de dúvidas, que podem ser exteriorizadas a partir dos mesmos elementos vivenciados pelo personagem Drogo. É a literatura, mais uma vez, se posicionando em momentos de reflexão necessária.

Os conflitos fazem parte da vida. E muitos deles aparecem diante das inúmeras possibilidades de escolhas. Muitas vezes, o indivíduo não se dá conta desses conflitos, e por isso vive à mercê dos acontecimentos, “mergulhados em contradições”. Segundo Horney (1969), ainda que tais conflitos sejam percebidos, é preciso certo grau de segurança e de felicidade para que a renúncia aconteça.

(…) tomar uma decisão pressupõe a vontade e a capacidade de assumir a responsabilidade correspondente. Isso abrange o risco de tomar uma decisão errada e a disposição para aguentar as consequências, sem procurar inculpar os outros. Abrange o sentimento de que “Isto é minha escolha, é obra minha”, e implica força interior e independência superiores às de que a maior parte da gente parece possuir hoje em dia. (HORNEY, 1969, p. 28)

Fazendo um paralelo com os tempos atuais, podemos supor que estamos vivendo no Forte Bastiani. Não foi preciso percorrer inúmeros quilômetros a cavalo para chegar à fortaleza. O isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 fez com que levantássemos muralhas ao nosso redor, em nossa própria casa. Por motivo de força maior, também acreditávamos que seria breve e temporário. Diferentemente de Drogo, que inicialmente aceitou permanecer quatro meses na fortaleza, acreditamos que tudo seria resolvido em quarenta dias. Os dias viraram semanas, meses… permanecemos à espera do grande momento!

Vivemos numa prisão gerada pelo próprio vírus, e passamos a viver uma realidade paralela nas redes sociais. Estamos num momento em que nossas interações ocorrem na esfera do digital, do virtual e, assim, a questão do tempo também passa por um sentido mais profundo – o que é verdade e o que é tempo geram inúmeras reflexões e angústias nesse novo mundo que impõe ao indivíduo uma mudança de seus padrões sociais.

Olhando-se ao redor, nada parece mudado. (…) Igual é o céu, igual o deserto dos tártaros, exceto aquele poste enegrecido na beira do socalco e uma faixa reta, que se vê ou não, conforme a luz, e é a famosa estrada.

Quinze anos para as montanhas foram menos que nada, e mesmo nos bastiões do forte não fizeram grande estrago. Mas para os homens foram um longo caminho, embora não se saiba como tenham passado tão rápido. (BUZZATI, 2017, p. 146)

Também sofremos com as inverdades e enganações. As fake news aumentam cada vez mais, e tentam a todo custo invalidar o acesso à informação, comprometendo a Ciência, a Saúde, a Política, a Segurança, a Economia, o Direito, a Democracia, a Vida. Por isso, como afirmou o historiador Yuval Harari em uma entrevista concedida em 2020[1], “precisamos estar mais alertas sobre nossas próprias fraquezas, para evitar sermos tão facilmente manipulados”. Precisamos também agir coletivamente. No caso da obra O Deserto dos Tártaros, foi justamente este ponto, no qual a informação foi trabalhada de forma individual e passou a afetar o coletivo, que gerou todo um desgaste, principalmente psicológico, na vida dos personagens. E não é o que vem ocorrendo nesta pandemia?

(…) todos lá dentro pareciam ter-se esquecido de que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres e hospitaleiras. Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para que misterioso bem? (BUZZATI, 2017, p. 20)

Assim como na morte do tenente Angustina, retratada no capítulo XV, vemos ações repugnantes, irresponsáveis, e até criminosas, serem constantemente confundidas com atos nobres e heroicos. Decerto, a obra O Deserto do Tártaros nos faz um alerta: com a morte e com o tempo não se negocia. Por mais angustiante que seja, a morte é a única certeza que temos na vida. Nas palavras do autor, “vira-se uma página, passa-se uma vida”.

Que toda essa crise gerada pela pandemia nos faça abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança, de pensamento crítico diante das situações e de perseverança. Foi Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, quem explicou que “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Referência

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 7ª ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.

ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Tradução de Luiza Ribeiro. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. 3ª ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 2007.

BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.8ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2018.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização e Outros Textos. Tradução Paulo César de Souza. Obras Completas. Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAN, Byung-Chul. Morte e Alteridade. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2020.

HORNEY, Karen. Nossos Conflitos Interiores. Tradução de Octavio Alves Velho 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de João Batista Kreuch. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

[1] https://digitais.net.br/2020/05/inteligencia-artificial-ameaca-liberdades-diz-harari/

Sobre o autor

Clayton Jeronimo Moleiro

Psicólogo. Pós-graduando em Psicologia Clínica pela Universidade Anhembi Morumbi. Aprimorando em Psicoterapia para Pessoas em Situação de Luto pelo Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto (LELu) – PUC-SP. Pesquisador do grupo de Estudos sobre Morte e Pós-morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Rachel Pereira Dias Calegario

Advogada. Pedagoga. Professora Universitária (Filosofia da Religião e Metodologia da Pesquisa Científica). Especialista em Direito Civil (PUC Minas). Especialista em Hermenêutica e Exegese Bíblica pela FABAPAR-PR. Pesquisadora do grupo de pesquisa sobre Estudos de Morte e Pós-Morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.